Companheiras

Parte 1

Era noite quando ele chegava cansado da jornada ao apartamento escuro, onde o silêncio era majestade. Adentrava a sala desfazendo o nó da gravata, produzindo o máximo de ruído possível e lhe respondia o eco dos seus sapatos no assoalho.

Quase sempre, acendia todas as luzes, ligava a televisão enquanto comia vorazmente a pizza lambuzada de catchup, acompanhada de cerveja, olhando a tela sem dar muita atenção ao enredo. Logo, voltaria à cozinha para bombardear o estômago com qualquer coisa que lhe desse uma baita má-digestão. Pra depois queixar-se a quem?

Numa dessas noites, após ter seguido sua rotina noturna, jogou a roupa num canto do quarto e dirigiu-se ao chuveiro, enquanto se lavava, observava a barriga proeminente. Porque tinha deixado de jogar futebol com os colegas? Quando já não tinha ninguém pra reclamar disso e os sábados sem nada pra fazer. Culpa daquela desgraçada! Tudo o que ela queria era afastá-lo dos amigos, que deixasse de fazer o que gostava para servir exclusivamente a ela.

E depois de mal-dizer mil vezes a ex-esposa, foi pra cama tentar se livrar das más lembranças e dormir. Não raro, levantaria sem sono pra ver algum programa sensacionalista ou conectar-se a um site de cybersexo. Virava a madrugada em bate-papos calientes que acabariam no prazer solitário. Só então pegava no sono ou o sono que o pegava de cheio, atrasando-o para o trabalho no dia seguinte.

Foi assim até seus olhos serem atraídos por aquela imagem em uma loja do Shopping, sempre que podia passava lá para vê-la, só faltava coragem, pior se tivesse outro interessado, tinha que chegar junto e logo, antes que alguém tomasse posse. Naquela noite, sonhou com ela. E no dia subseqüente, tudo se resolveu, do jeito que ele premeditara, ela era sua.

Entrou no quarto, ansioso, acendendo a luz... lá estava ela estirada na cama como a tinha deixado mais cedo: serena e calada. Sentia certo prazer em contemplá-la daquele jeito, era da maneira que ele sempre quisera. Sem muita dificuldade atirou pra longe o cinto e abriu o zíper, livrando-se da roupa em curto espaço de tempo. Feito uma fera faminta se lançou sobre ela, mergulhando profundo e, no desespero de ter passado por tanto tempo em abstinência a possuía, socando-lhe o membro bem forte. Se ao menos ela gemesse, gritasse... Mas, era tão cativa e isso lhe agradava tanto. O coração e o corpo eram uma coisa só, bombeando tudo quanto estivesse embaixo e ao redor dele. A cama iria agüentar? Nem importava, o prédio poderia ir a baixo, os vizinhos poderiam reclamar, alheio a qualquer conseqüência, o que ele queria era tê-la até acabar-se.

Não tardou muito, ambos jaziam lado a lado no leito, depois da batalha que faria de qualquer um vencedor e vencido ao mesmo tempo. A respiração ofegante, suor e sêmen ensopando a cama. Ele, após a desaceleração dos batimentos cardíacos, dormia. Enquanto ela ficava a velar-lhe o sono.

A excitação inicial foi virando obsessão, vício lascivo... já não saía com os amigos nem os convidava à sua casa, ela não deveria ser vista, era só sua, fora feita para ele. E qual não era sua sensação de liberdade.

Não era assim com Lilith, sua ex, que exigia mais tempo nas preliminares e se queixava do seu ronco. Lilith, não seria uma mulher de Atenas, era o oposto da sua nova companheira. Ela só pensava na sua carreira de executiva, em viagens, em seu ego. E ele? Estava sobrando mesmo naquele conto de 365 noites quase sem sexo. A traição não fora o pior delito... Foi ela quem quis ir embora, mas o marido assentiu prontamente... já que o único elo que poderia atá-los pra sempre fora lançado por sua genitora em algum fétido esgoto.

A vida desse homem, porém, ganhara novo sentido, tinha tranqüilidade, ninguém reclamava mais do assento do vaso sanitário respingado de urina. O apartamento tinha outro aspecto, tudo podia ficar pra depois, nada tinha urgência. A pia da cozinha estava pingando já fazia dias, mas isso não incomodava o sono dos amantes. Que ficasse assim, até que um dia ele tivesse paciência pra consertá-la.

Três meses naquela situação e ele começava a perceber que aquilo já não lhe bastava, ele queria mais, mais o quê? Tinha o sossego, se saciava no sexo e... Companhia? Alguém o disse certa vez que “o homem estava fadado a fazer escolhas”, sim, era verdade, ele a escolhera, tinha escolhido aquela vida, aquela rotina. Também sabia que tudo é efêmero, mas se assustou com a rapidez com que a sua paixão chegara ao fim...

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Parte 2

Já era sexta-feira, fim de expediente, ao bar! Era momento de engolir a angústia com um bom drink. O grilo falante da consciência, através de uma lucidez alcoólica, lhe mostrava a que ponto havia chegado a desgraça de um homem, a sua desgraça. E após esvaziar mais um copo, mirou-se nele, viu seu reflexo naquele vidro embaçado.

A noite, com ares de boemia, parecia cantar para ele: “Desilusão, desilusão, danço eu, dança você na dança da solidão...”. Enquanto ele ainda filosofava mais alguns minutos com o copo vazio e a sua triste sina. Aparentemente conformado, pagou a conta e zigzagueou até o apartamento. Entrou cambaleando, com mais vontade que fragilidade física para cair, estar junto à sujeira que se acumulava no chão era o seu desejo e tendo entregado seu corpo, adormecera reduzido à pequenez dos germes.

O sol despontava lá fora, mas o apartamento não se contagiava com a luz, era no máximo penumbra... Um homem caído ao chão, acordava com a roupa amarrotada e os pés calçados tal como chegara na noite anterior. Olhou ao redor, os móveis o observavam de cima, o porta-retrato com a foto de formatura parecia condená-lo, com aquela mão estendida para frente em juramento. Não tinha coragem de levantar-se ante o olhar do garoto de bata preta no retrato. Seriam a mesma pessoa?

A cabeça parecia ter dobrado de tamanho, certas figuras lhe rondavam a mente: a da mãe que não conhecera e a da ex-esposa que ele havia enxotado de casa. “Quem disse que a mulher é sagrada?” Perguntaria se alguém estivesse ali... Era, principalmente, por causa delas que se achava jogado no piso da sala, inerte. Se ele fosse uma delas teria quebrado a louça, teria chorado ou feito qualquer cena dramática em público, depois apareceria diabolicamente maquiada, sobre os saltos, como se nada tivesse acontecido. Mas ele tivera esse destino, o de silenciar a própria desgraça, qualquer demonstração de fraqueza seria a gota d’água.

De repente, começava a ter fúria, a fúria que o fazia levantar e entrar no quarto ameaçadoramente. Lá estava ela, tão sua, tão quieta, seria capaz de odiá-la algum dia? Só sabia que aquela ira existencial lhe dava mais vontade de possuí-la, ela não era imagem para adoração, era para ser tocada e maculada, segundo a vontade dele... Sim, ele a domesticara para isso, ela estava ali por esse motivo, começou dando-lhe tapas na cara, ela gostava, continuava feliz ali sentindo o peso do corpo dele e estremecendo a cada bofetada recebida. Ele cada vez mais feroz, socava o seu ódio dentro dela, agarrou-a pelo pescoço apertando-o, mas ela continuava sem reação...

Dessa vez o prazer pedia o extremo, mais do que tudo que já tinha feito, qualquer sinal de razão havia desaparecido da sua face, a libido e o desejo de matar se confundiam. Ela não cedia às suas tentativas de enforcamento, o que lhe dava mais ódio, ela dava trabalho pra morrer, feito um joão-teimoso quando alguém tenta derrubá-lo. O homem levantou-se, pegou a tesoura na gaveta e deu-lhe uma estocada certeira no ventre. Nesse momento, ele entrou em erupção, derramando sobre o corpo estendido na cama a lava esbranquiçada. Ela simplesmente ria o seu riso já flácido de boneca inocente.

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Ivanita
Enviado por Ivanita em 14/07/2011
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