ISSO ACONTECE

Os morros do Rio de Janeiro são ocupados por habitações que, em seu conjunto, recebem o nome de "favela". Tal palavra traz em si um sentido imediatamente pejorativo, pois quem na favela tem sua moradia é considerado pela população em geral como alguém de classe inferior, de menor instrução e baixo poder aquisitivo; enfim, o favelado é alguém de vida duvidosa, pouco favorecido pela sorte, dando duro no trabalho e morando mal, muitas vezes sem água, sem luz elétrica. A verdade é que a maioria das casas erguidas hoje no morro, embora simples, são seguras, confortáveis e satisfatoriamente bem construídas. Mas também é fato que muitas pessoas, necessitadas e desprovidas de quaisquer recursos, ainda se metem a improvisar suas casas - para não dizer "barracos" - sem antes procurar um solo firme, ou então contentam-se em tê-la numa encosta do morro, o que põe a precária habitação em constante situação de risco. Risco mais humano do que material, obviamente. As autoridades, compreensivas mas impotentes, não conseguem evitar essa proliferação de construções irregulares que, naquela grande cidade, só tende a aumentar na mesma proporção do aumento populacional.

José Américo morava numa daquelas favelas, e sua casa deixava algo a desejar em questão de conforto e segurança. Construída na encosta de uma elevação, uma ou outra vez ele considerou a possibilidade de haver um deslizamento de terra lá de cima, no caso de algum temporal. Mas houve algumas tempestades assustadoras ao longo daqueles anos em que ele ai estava, e nada de trágico ocorreu. A situação atual é que ele tinha mulher e um filho de cinco anos e, assim, a preocupação prioritária ela alimentar os dois membros de sua família, dando-lhes diariamente o que lhes fosse necessário, e isto ele conseguia fazendo biscates onde e quando a oportunidade surgia, tanto no morro quanto na cidade. Mas encontrava satisfação em qualquer serviço, pois tinha o amor da mulher e do filho, que eram a razão de sua vida.

Na noite daquele sábado, foi ele mais uma vez à casa de seu amigo, não muito distante da sua; foi para o costumeiro bate-papo acompanhado do jogo de cartas com outros conhecidos que ali se juntavam. Até altas horas conversavam, jogavam e até bebiam, pois uma cerveja naquela hora também não ia mal. Mas importante mesmo era o jogo, já que bancava-se dinheiro vivo, ainda que a valores baixos.

E José Américo teve sorte, ganhou em três horas mais do que ganhara o dia inteiro limpando o jardim num prédio em Ipanema. Seus parceiros, vendo que a noite não lhes favorecia, desistiram de jogar para não perder mais. "O Zé Américo se deu bem hoje", disse um. "Vai fazer uma festa amanhã", disse outro. E ele sorria, satisfeito. E era hora de ir-se embora.

Saindo, viu que o tempo estava mudando. Não havia estrelas lá em cima, e o céu enegrecido carregava-se de densas nuvens, enquanto raios e trovões diziam que a tempestade era iminente. José Américo avaliou a situação e, preocupado, foi-se embora apressando o passo. A mulher e o filho o esperavam em casa, ele não deveria ter-se demorado tanto, pensou ele, sentindo-se um pouco culpado.

Logo começou a chover, e a água vinha cada vez mais forte; em um minuto o homem já estava todo molhado. A água formava uma enxurrada que descia rapidamente pela ladeira abaixo. E era barrenta, pois vinha do alto do morro.

Faltava percorrer uns duzentos metros para chegar ao seu destino, quando José Américo ouviu um estrondo que não era trovoada. Assustou-se e pôs-se a correr. Enfim chegando, não pôde conter um grito de pavor. A sua casa já ali não estava, fora abaixo, e o local era só destruição. A lama vinha de cima e impiedosamente varria o local, cobrindo-o mais e mais. Chamou pela mulher, pelo filho, gritou o mais que pôde, pedindo socorro. Os moradores de casas próximas, que não foram atingidas, acudiram debaixo daquela chuva toda, e viram a tragédia. O mais sensato era chamar os bombeiros, e foi o que fizeram.

Nosso herói, aflito e desesperado, queria mergulhar naquela lama, à procura dos dois que lhe eram tão caros. Os vizinhos esforçavam-se para dissuadi-lo da ideia, que era louca. "Fique calmo, que os bombeiros já vêm aí", disse-lhe alguém.

Os bombeiros não tardaram, iluminaram o local com suas potentes lanternas e puseram-se à luta com toda sua experiência profissional. Mas era difícil conseguir alguma coisa enquanto o temporal continuava e a lama ainda vinha. Mesmo com a chuva caindo forte, juntou-se nas imediações muita gente, pessoas solidárias, desejosas de ajudar. José Américo, por sua vez, não se continha, chamava pela mulher e pelo filho, procurando-os aqui e ali, mas nada.

A chuva parou no meio da madrugada, o que facilitou o trabalho dos bombeiros, que esforçavam-se para encontrar com vida os dois desaparecidos, provavelmente soterrados. O pai de família, exausto e sujo de lama, não descansava, não parava um minuto e não sentia o passar do tempo.

A madrugada avançava e ia chegando ao seu fim. Aos poucos o céu tornava-se mais limpo e já principiava a amanhecer. "Tudo será mais fácil com a luz do sol", disse um dos bombeiros. José Américo então lembrou-se do que a mulher lhe dissera na véspera: "De manhã, quando o sol sair, a gente já vai estar lá".

Teve um estremecimento e caiu de joelhos, pôs o rosto entre as mãos e não conseguiu conter as lágrimas. Mas não eram lágrimas de desespero, e sim de alívio. Pois acabara de lembrar-se que a mulher e o filho haviam viajado ao anoitecer daquele sábado para visitar a sogra numa cidade distante. "De manhã, quando o sol sair, a gente já vai estar lá", disse-lhe ela ao despedir-se dele. O homem ficou eufórico por dar-se conta de que a mulher e o filho estavam a salvo. Por outro lado, grande foi o seu constrangimento pelo papel feito, pela falta de memória, se bem que a culpa não era inteiramente dele. Afinal, no desespero de ver tudo indo abaixo, natural seria que ficasse transtornado daquele maneira. Isso acontece.

Mesmo assim, ele não falou nada aos bombeiros, nem a ninguém, para não dar maior vexame. Enquanto os homens continuavam cavando com suas pás, ele foi saindo de fininho. Procurou apenas uma torneira, mais abaixo, para lavar as mãos e o rosto. Conseguindo depois chegar à rodoviária, comprou uma passagem e foi-se embora para juntar-se à mulher e ao filho. Na favela nunca mais foi visto, e ninguém até hoje entendeu o desaparecimento da família.

Egon Werner
Enviado por Egon Werner em 13/07/2011
Código do texto: T3091949
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