DIA DE UMA BRASILEIRA

Pontualmente quatro horas. Da manhã? Da madrugada? Que diferença faz se ainda é noite na escuridão das ruas! O tocar do despertador sempre me deixa atônita, perdida. Não sei onde estou... O coração salta pela boca, custo a “pegar no tranco”. Faz tanto frio! Ah! Se eu pudesse ficar dormindo, enrolada nas cobertas... Não tenho tempo para sonhos ou devaneios, há muito que ser feito! Tento fazer o máximo de silencio, pois minha mãe e meus dois filhos ainda dormem e eu deixo o café pronto para eles. O pão é amanhecido, mas o café como sempre quentinho, na garrafa térmica. Na mesa, algumas bananas, única fruta da semana.

O frio cortante que tenho que enfrentar, faz com que eu me agasalhe muito. E fico feliz por ter ganhado uma bota, dessas baixinhas, de tecido aveludado, dois números maior que o que eu uso, pois assim posso colocar mais meias e o pé ficará confortável para a longa jornada que tenho que enfrentar.

Meia hora depois, já estou a caminho do trabalho, descendo dezenas de degraus cheios de lama, da comunidade onde vivo. Somos esquecidos pelos nossos governantes, mas já não moramos em favelas! A melhoria que nos deram foi no nome, mais suntuoso. Talvez isso os faça esquecer o quão duro é morar em lugares como este.

E a cada degrau que desço, acelera o meu coração. Não somente pelo cansaço em si, mas pela insegurança de ter que descer por entre vielas tão estreitas e escuras e não saber o que se pode encontrar pela frente. Será que hoje encontrarei a morte? Ou somente um desses viciados que só querem minha bolsa? Não tenho cartão de credito, talões de cheque. Apenas um velho celular que ganhei da moça do escritório. Simples, que só faz falar, isso quando tem crédito! O consolo é que ao chegar perto do ponto de ônibus, por certo encontrarei algumas pessoas, tendo o mesmo destino que o meu... O trenzão, como costumamos dizer!

O ônibus chega lotado, nada a se estranhar! Perto do trem, o ônibus chega a ser confortável! Ao descer, na estação de trem, somos levados pela multidão em direção às plataformas. Um vai e vem frenético de pessoas, cada uma com uma expressão diferente no rosto, mas todas com o olhar pesado, marcado pela luta diária. Um grande formigueiro humano, onde logo serão todos enlatados pela composição que nos levará ao nosso destino!

Não é difícil entrar no trem. O bolo de massa humana nos conduz. Mas é quando se fecham as portas que nosso drama se inicia. Quase não temos espaço para nossos pulmões respirarem, o que chega a ser um presente, em vista dos “aromas” percebidos. Cheiro de boca, um ou outro de álcool para enfrentar o frio desses dias. As roupas que cheiram mofo, naftalina, aquele cheiro azedo de roupa que secou a sombra, as marmitas que exalam por todos os lados, cheiros dos mais diversos e agressivos.

E a cada estação a situação piora. Impossível caber mais gente! Mas acreditem o entrar é constante.

Descer do trem é como ser um vomito na boca de um enfermo... Apenas somos jogados, aos tufos, fora do trem. Mas as feições das pessoas não mudam mais. E seus olhares continuam frios, distantes.

Ainda enfrentarei meia hora de caminhada. Perto demais para se tomar outra condução e meu empregador não pagaria por ela, ou até me mandaria embora pelo aumento de custo. O que resta é andar, chegar ao meu ganha-pão! No meio do caminho penso na expressão “ganha-pão”... Nada mais correto, pois os salários andam tão baixos que por vezes nem mesmo o pão consigo comprar!

Chego à porta da fábrica já exausta, mas meu dia nem começou. Bato meu cartão e começo mais um dia de trabalho. Sou faxineira, lido o dia todo com água fria, que sai cortante da torneira, quase congelante. Ao meio-dia, ao soar o apito da fábrica, paramos para o almoço.

A empresa nos dá vale alimentação, porém o valor é baixo e os “botecos” da redondeza têm preços acima, o que torna inviável almoçar fora. Mesmo porque eu vendo meus vales, para pagar o frete que leva meus filhos á creche mais próxima, que fica a 3 km de casa e minha mãe tem problemas de saúde, não conseguiria fazer esse percurso duas vezes ao dia.

A empresa não tem refeitório, nem mesmo permite que se coma em suas dependências. É. Sou bóia fria também. E mais! Minha comida coloco numa dessas embalagens plásticas, de lojinha de um real, e com colher de plástico, já que temos que passar por detector de metal, na saída.

Se eu for pega com marmita de alumínio, corro o risco de ficar desempregada. Se bem que muitos funcionários da fábrica fazem o mesmo que eu, e os donos fazem vista grossa quando os vêem na rua. Nos juntamos, sem o uniforme da empresa, claro, numa calçada e lá comemos, conversando, contando piadas.

Hoje irei almoçar arroz, salsicha em fatias com molho e uma verdura cozida. Parece que minha mãe caprichou. Tem dias que a comida está tão seca, que custa a descer pela garganta. E nem o fraco sol do meio-dia aquece nossa marmita. Mas não há o que reclamar, no verão muitas vezes a comida chega a azedar, por ficar a manhã inteira escondida. E enquanto almoçamos, as piadas continuam!

Nesses momentos de descontração, até esquecemos nossa luta diária!

Ao voltarmos ao trabalho, somos todos comunicados que teremos que fazer uma hora diária a mais, pois a empresa fará férias coletivas e nós faremos um banco de horas. De onde tirar tal tempo? A maioria de nós demora três horas para chegar ao trabalho! São seis horas somente de viagem! E eu ainda tenho dupla jornada! O serviço pesado da casa, a roupa para lavar, as compras, fica tudo em meus ombros.

O dia termina e novamente enfrento o mesmo empurra-empurra de volta ao lar. A mesma insegurança com a escuridão das ruas. O corpo moído pelo cansaço, mas tendo que encontrar forças, agora para subir toda aquela escadaria e depois a rotina da casa, que me aguarda.

Autoridades? Governantes? Existem? Ou só na época da eleição que se lembram de nós pra fazer fotos e campanhas mentirosas, hipócritas?

Mas hoje as vielas estão iluminadas pelo helicóptero da policia! E muitos carros deles na entrada da comunidade. Por certo a procura de algum corpo caído...

Enloucrescida
Enviado por Enloucrescida em 07/07/2011
Código do texto: T3081015
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