CLEONICE
Há muitas horas que chovia. Era chuva grossa, temporal.
Cleonice, pés no barro, sapatos na mão, subia o morro com os oito filhos—seis meninos e duas meninas—e a lembrança de três maridos. O terceiro tinha ido embora, há uns dois meses, para tentar a sorte na Bahia.
Entrou na venda do Zé Gomes, apanhou três pacotes de biscoito e pediu pra botar no caderno. Continuaram a subida, mastigando biscoitos respingados de chuva até chegarem em casa.
As crianças, dentro do barraco, temerosas com o temporal, se despiram e Cleonice, uma a uma, enxugou-as com a grande toalha felpuda, que raramente saía do armário.
Na noite anterior, ela e as crianças, visitaram a comadre que estava nas últimas e quando desabou o aguaceiro, o compadre não fez por menos: fez a cama de colchonetes no chão e Cleonice dormiu lá, com os filhos.
A chuva não cessava.
No outro lado, no lado bom da cidade, o prefeito reunido com o secretariado, em frente à televisão, via as últimas imagens da enchente: carros arrastados pela enxurrada, trânsito parado, pessoas com água pela cintura vencendo a correnteza, comerciantes apreensivos.
Através de sua assessoria de imprensa, distribuiu uma nota conclamando a população a se manter calma, aqueles em área de risco que abandonassem suas casas.
Decretou estado de calamidade pública e ponto facultativo.
Era 8 horas da noite. A chuva tinha amenizado, quando o primeiro barraco rolou. Veio de cima, embolado, despedaçado, como um grande caixote empurrado pela avalanche de barro.
Cleonice desceu o morro com as crianças em fila indiana, a carteira de trabalho e o seu dinheiro no bolso da saia.
Poucas pessoas abandonaram suas casas.
Outro barraco rolou, bateu no seu e vieram juntos com a massa descomunal de barro.
Outros barracos também desceram, em outros bairros da cidade.
Cleonice sentou no meio-fio da calçada e chorou pelos sonhos que se perderam dentro do barraco. Sonhos simples como a volta do Francisco para ajudar na criação das crianças, para dar sustança na casa.
Foi perdida nestes pensamentos que os refletores iluminaram seu rosto; ela abraçada aos filhos, o Prefeito ao seu lado e a mídia presente.
Sob refletores, ouviu palavras de conforto, promessa de uma casa nova de dois quartos em lugar seguro, luz e água encanada, esgoto.
Depois disso, muito cansada com aquele dia tumultuado, foi com seus filhos para o Brizolão, onde havia muitos desabrigados, e antes de dormir comeram macarrão com salsicha.
A chuva parou.
No dia seguinte, com a presença do Secretário de Assuntos Especiais, o Prefeito fez a entrega das chaves de sua nova casa.
Outras 21 famílias, também receberam suas chaves das mãos de diversas autoridades.
A mídia registrou discursos, abraços, agradecimentos e lágrimas de famílias humildes.
Neste instante, seu pensamento foi para o Chico. Pediu a Deus que ele estivesse vendo tudo aquilo pela TV - hipótese remota – e voltasse logo para sua casa nova.
A Prefeitura pagou o enterro de doze pessoas: dois homens, quatro mulheres e seis crianças, vítimas dos deslizamentos. Também anunciou que famílias, em área de risco, seriam removidas para casas novas.
O mês virou.
Naquele sábado, Zé Gomes vestiu roupa nova, passou perfume atrás das orelhas e pente no cabelo.
Pegou o trem para Campo Grande levando no bolso a folha do caderno do pendura.
Viu as crianças de Cleonice brincando na pracinha e bateu palmas no portão da casa 25, de dois quartos.
Não foi surpresa para ela, pois ia passar no morro, na segunda, para pagá-lo.
Mandou que entrasse.
Sentiu o perfume masculino. Admirou o capricho do cabelo penteado e a roupa bem passada.
O bolo de chocolate estava pronto, adivinhando que ele vinha.
Ela fez café.
Conversaram bastante e, na conversa, ele foi se aproximando e se beijaram.
Um longo beijo represado.
Beijaram bastante.
Namoraram bastante.
Ela deixou...
Zé Gomes esqueceu a folha do caderno no bolso.
Saiu à noitinha. As crianças de Cleonice brincavam na calçada.
Com um sorriso nos lábios, ela pressentiu que estava esperando o nono filho.
Que fosse outra menina, pediu ao Senhor.