Amor Fati

- Estarei contigo daqui a poucos minutos.

Colocou o telefone no gancho. Fechou as cortinas do quarto. Fechou as cortinas do palco da vida.

Dirigiu-se ao banheiro. Despiu-se do roupão – branco e macio. Nua, penteou os cabelos negros e formou cachos artificiais com um aparelho qualquer. Riscou seus olhos com um lápis negro. Modelou seus cílios de forma longa e ereta. Representou uma pinta, que nunca existira, próxima aos lábios. O batom era escarlate – primeira vez que o utilizava.

Feito o rosto, recolheu da tampa do sanitário a liengerie negra e vermelha que fora separada com antecedência. Vestiu-se. Apalpou seus seios a esperar que se tornassem maiores e mais firmes. Compôs com sua cinta-liga uma meia-arrastão tecida, provavelmente, por bacantes. Calçou seu salto-agulha envernizado. Último movimento: o perfume!

Apagou a luz do banheiro, encostou a porta e dirigiu-se à sala.

Sentado em uma poltrona, com suas mãos apoiando o próprio crânio (que observava o copo de Martini temperado com cinzas de cigarro a fazer companhia a alguns comprimidos avulsos e pequenas linhas brancas) suspirava e ria. Um sorriso ingênuo – como os das crianças.

Ela aproximou-se e tocou-lhe a nuca. Nenhuma reação. Tirou-lhe as botas e as meias. Desfivelou-lhe o cinto. Despiu a calça. Ainda que não usasse cueca, ela não pôde ver seu sexo; não existia. Arrancou-lhe a camisa. Nu permanecia.

- Estou pronto. Te quero como nunca! – Ele exclamou.

Passeou pela sala. Tec. Tec. O som de seu salto-agulha ressoava por todo o apartamento. Acendeu um cigarro. Dirigiu-se à gaveta. Retirou o revólver. Aproximou-se dele.

- Como quiser. – Disse a ele com altivez.

Com sutileza ele tomou de suas mãos o revólver. Fitou-o por um instante de tempo. Ergueu à sua boca. Engatilhou. Disparou.

Ela retornou ao banheiro. Abriu a porta. Acendeu a luz. Desfez os cachos artificiais.

Borrou a pinta que nunca existira. Manchou o papel com seu batom. Manteve os cílios como estavam. Retirou sua liengerie. Dobrou-a. Despiu-se da calça-arrastão e enrolou-a. Descalçou-se do sapato verniz e separou-o em um canto do banheiro. Vestiu-se com seu roupão – branco e macio. Apagou a luz. Fechou a porta. Dirigiu-se à sala. Pegou as chaves. Desvirou o porta-retrato do casal. Abriu a porta. Saiu. Trancou. Jogou a chave por debaixo da porta. Foi ao fim do corredor e clamou o elevador. Vamos descer: quarto andar. Saiu do elevador. Cruzou o corredor. Retirou do bolso do roupão – branco e macio – a chave da porta. Abriu. Entrou. Fechou. Foi ao quarto. Sentou-se na cama; sorriu. Deitou-se e abraçou seu companheiro.

- Boa noite, amor.

Daniel B M Silva
Enviado por Daniel B M Silva em 30/06/2011
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