Bicho-Mulher

Até a poça virar um mar na sala, apagada pelo rodo ,

que seca tudo, me desiste de tudo e que não quer ver nada.

Somente a passagem, somente a mudança. Quer ver so o que vai desaparecer. Assim mainha fazia na casa. Limpava toda hora, qualquer coisa que caia no chão, ela trazia o pano, molhado no sabão

e esfregava tudo, levando pro balde e aliviando um pouco. A casa era tão limpa que a gente nem conseguia ficar em paz. Medo de sujar e a vassoura vim atras da gente. Qualquer coisa, papel, água, tudo, secava a paciência dela. tudo era pequeno, rápido, a gente vivia no mundo da lua, fora da terra, das coisas simples, o corpo lá e cabeça longe, tipo no quintal e na televisão. Não tinha como voltar e encontrar as ranhuras daquele canto.

Um dia ela chegou pra mim, como me passasse um segredo de família. “A partir de hoje você é o responsável pela limpeza da casa”. Olhei sem saber. Ela passava o dia na cadeira no quintal, ou arrumando coisas, e essa loucura de querer tudo limpo. Qualquer vento que trouxesse uma folhinha, que até embelezava o chão, gritava pra alguém jogar fora. Ou ela mesma saltava nela e orgulhosa do feito, amassava no quintal, perto do cesto. Assustei quando ela me achou maduro o suficiente pra ser maluco como ela. “To te dando uma responsabilidade, presta atenção” com o balde aguado de sabão e kiboa, o cheiro forte. A casa brilhava, dava medo até. Acho que é por isso que tenho medo de tudo que é muito limpo, brilhante, evidente.

A partir daquele dia, não tinha hora pra brincar. Dizia que eu só poderia brincar quando a casa estivesse limpa. Mas pra ela, nunca estava limpa, porque estava ligada com tudo quanto é sujeira do mundo. Até aquela do futuro, da parte da tarde, ou do outro dia. Eu ficava sentado no sofá da sala, esperando o mundo se sujar. A porta um pouco aberta, dava a acesso a rua, sempre ensolarada que me fazia querer nunca ficar dentro de casa. Da sala, olhava o fundo, corredor, vermelho brilhante, quase refletindo, o retrato do quintal. Um espelho deitado. Nada a fazer. Dizia isso pra ela. “Mas a qualquer momento pode sujar. É importante está atento”. Vez ou outra alguém ia me chamar. Dava uma vergonha daquilo, minha mãe parece que nem sabia que eu era homem. E nunca vi homem limpando a casa, ainda mais sem precisão. Perguntava quanto tempo eu teria que ficar. Dizia que não tinha tempo. No final do dia podia sair pra fazer alguma coisa. Não queria brigar com ela, porque achava que de tão fraca, não aguentava nada de sinceridade. Ao mesmo tempo me deixava culpado de deixar ela fazer o que queria, so pra não ficar triste.

A coisa que me assutou muito foi o dia que meu pai chegou e me pegou passando a pano na casa inteira. Olhou pra mim e sentiu nojo. Só ouvi as palavras dele com minha mãe no fundo quintal. “Esse menino vai virar bicho-mulher”. Fiquei o dia todo pensando o que seria isso. Depois daquela observação dele, toda vez que limpava a casa, tinha duas pessoas juntas, eu e esse tal de bicho-mulher. Cada passada de pano, aparecia na minha frente essa assombração. Uma invenção pra essa palavra. varias cara, todo jeito eu inventava essa coisa. A noite, na cama, pensando no dia, ou nas brincadeiras da escola, esse tal de bicho aparecia na cabeça, olhava minhas mãos meus pés. E bicho tem que ter pêlos. E toda hora eu olhava minhas mãos e pés, esperando o primeiro fiapo. Os dentes nem se fala.Andava com a boca aberta no espelho esperando a qualquer hora minhas presas chegarem. Com essa historia do meu pai, a tempo se confundiu comigo, me misturava com as cabeças e me escutava muito, nem sei quem me falava, mas vinha de dentro, e era só porcaria e a maioria desse tal de bicho-mulher, que deveria, pelo nome ter alguma coisa de mulher.

Mesmo meu pai falando minha mãe não estava nem ai. O que ela queria mesmo era o céu na terra. Nada de ruim na vida. E nada representava isso melhor de que uma casa limpa. Acendendo todo aroma no nariz. “O cheiro não pode ser muito senão vira como sujeira”. Ela queria fabricar o tempo todo o tempo dela, o lugar de morar. Não permitia nada correr, ser do jeito que tudo era. Vivia como se morasse num árvore na floresta pra besta grande não pegar a gente. E o susto dela era pó, folha seca e o cheiro da vida, que assustador, era controlado também com desinfetante da venda de seu Dema. “Que estava o olho da cara”. Falava assim se valorizando.

Fiquei eficiente como ela. Aprendi a me saber com todo tipo de sujeira. Aprendi a usar paninho, apagar tudo, tirar tudo quanto é pó da frente. Eu e o bicho-mulher, que de tanto pensar já parecia uma pessoa. Hoje nem sei que eu é de verdade, eu ou bicho-mulher que meu meu pai criou. Antes eu procurava esse bicho com os olhos. Hoje, pra ver, nem de olho preciso mais.