Quem Me Atravessa? Quem Me Atravessa?
A vida de Belo Horizonte é esta:
Subir Bahia e descer Floresta
(Rômulo Coimbra Tavares Paes (1918-1982) nasceu em Paraguaçu/MG. Exerceu uma extensa gama de profissões: foi advogado, cantor e jornalista, poeta, compositor, radialista, líder sindical e vereador. Ergueu-se em sua homenagem um monumento localizado na esquina da Avenida Álvares Cabral com a Rua da Bahia. Nele se encontra gravada a frase acima citada e imortalizada em uma de suas canções)
Ali nas imediações do conhecido Edifício Arcângelo Maletta, entre as esquinas da Avenida Augusto de Lima com a Rua da Bahia, na região central de Belo Horizonte, postava-se algum tempo atrás um deficiente visual que passava boa parte do seu dia apenas atravessando de um lado para o outro daquela avenida. Pode parecer estranho, mas era exatamente isso o que aquele homem costumava fazer várias vezes durante o dia.
No entanto - como bem devem ter observado - eu disse “postava-se”, usando o verbo definitivamente no passado. O fato é que recentemente o tal sujeito foi expulso dali por uma cidadã assaz nervosa e, quem sabe, talvez um pouco justa mesmo. O detalhe significativo nessa história é que o referido homem permanecia por todo o tempo junto à calçada repetindo a frase citada abaixo e esperando que alguém o ajudasse em sua travessia:
- Quem me atravessa? Quem me atravessa?
Assim que escutava o mais leve ruído de passos ou percebia a presença de alguém ao seu lado, imediatamente o sujeito atacava com a sua solicitação:
- Quem me atravessa, quem me atravessa?
O cômico da situação é que todas as vezes em que uma pessoa se aproximava para atravessá-lo, ele invariavelmente aproveitava a ocasião para “encostar” uma das suas mãos na região superior do tórax de quem o estava ajudando.
Se encontrasse ali as duas protuberâncias naturais do sexo feminino, os seios, ele se deixava ficar junto à pessoa e atravessava a avenida ao lado dela. Ao contrário, caso o seu “acompanhante” fosse um homem, ele se afastava com mau humor e retrucando sempre as mesmas palavras:
- Pode deixar, pode deixar.
Em seguida, retornava ao passeio público e recomeçava a sua ladainha:
- Quem me atravessa, quem me atravessa?
Mas como é costume dizer: um dia a casa cai! E nesse dia quase sempre os fantasmas se enganam sobre quem devem aparecer e assustar. E ainda mais: de quando em vez o próprio cavalo resolve igualmente não dar mole para São Jorge, o que faz com que o santo tenha inevitavelmente que caminhar a pé por algumas quadras...
Então foi assim que em certa ocasião aquele homem acabou encontrando alguém para “quebrar o seu galho”. Ainda hoje, no entanto fico sem saber se foi esse de fato o caso ou não, dependendo uma tal perspectiva tanto do ponto de vista dos olhos de quem vê quanto dos seios de quem sente!
Ao sentir as mãos do homem apalpando-lhe as ditas “partes altas”, certa jovem mui graciosa e bela partiu como uma rajada e munida de um grosso xingamento na direção dele. A princípio os passantes ficaram um tanto surpresos, afinal xingar um sujeito de bengala em plena rua pode nos parecer no mínimo esquisito, algo assim como cometer um sacrilégio ou agir de forma politicamente incorreta.
No entanto – e após as devidas explicações - os passantes acabaram compreendendo tudo o que ocorrera.
Diz-se que até o dia de ontem aquele indivíduo não mais ousou colocar os pés na Avenida Augusto de Lima. Outro dia, porém, estando eu a transitar tranquilamente naquelas imediações – como se diz na velha canção, “subindo Bahia e descendo Floresta” - parei durante alguns segundos observando o trânsito local e buscando encontrar por ali algum sinal daquele esperto companheiro. Mas nada! A única coisa que encontrei de fato foram aquelas três palavras mágicas ressurgindo na minha memória em forma de adágio ou do velho cavalo-marinho:
- Quem me atravessa...? Quem me atravessa...?