PÃO, UNHAS SUJAS E LOBISOMENS
Quando se espalhou a auspiciosa notícia de que abririam uma padaria na esquina da rua em frente ao poste de ferro da luzinha amarela e fraca, onde alguns moleques costumavam ficar à noite conversando miolo de quartinha, fazendo traquinagens ou participando de brincadeiras, local igualmente disputado por bêbados e cães vira-latas que ali encontravam abrigo para seus instantes de estupor ou para fazer as necessidades, uma porção de gente do bairro suspirou aliviada. Já não era sem tempo, pensavam respirando fundo os moradores locais.
Finalmente o reinado sórdido de Antônio Padeiro desmoronaria com a chegada da concorrência. Aquele miserável corcunda composto só de osso e pele, irascível e torpe, de olhos esbugalhados e sorriso irônico, não seria mais o único dono de padaria nas proximidades, e quem realmente acreditava que ele cuspia em cada pão antes de enviá-los para o forno, enojado por ter de engolir diariamente alimento suspeito de conter a saliva daquele imundo porco magro nunca mais compraria em seu estabelecimento. Seria uma espécie de vingança por tabela, por assim dizer. Ele que, a partir de agora, comesse e amargasse o pão amassado pelo diabo.
Antônio Padeiro vivia enfurnado por entre as massas que ele mesmo produzia sozinho, diariamente, desde a madrugada de cada amanhecer até o início da noite. Rotina da qual não fugia nem um milímetro. Antes do cantar do galo, por volta das duas horas da madrugada, acordava emburrado, olhava a mulher esparramada ao lado peidando ruidosamente de vez em quando, então esbravejava enraivecido:
_ Mais um porra de dia cansativo, que merda! Quem disse que isso é vida?
Outra súbita flatulência da mulher adormecida troava com vulgar estridência no quarto, obrigando-o a pular da cama imediatamente, antes que o ambiente ficasse empesteado daquele odor catinguento que só a bruaca de sua infeliz mulher era capaz de exalar. Não havia tempo nem mesmo para uma espriguiçadela, em pouco o dia chegava e pronto, os pães já deveriam estar prontos para os consumidores. Corria ao banheiro para lavar o rosto usando a água fria parada no tanque, depois dava sua interminável mijada matinal e suspirava. Não escovava os dentes, o tempo era muito curto para essas besteiras sem tanta necessidade assim, pensava ele. Era bastante rápido no tocante a livrar-se das elucubrações fisiológicas entediantes, não lembrando nem se importando de lavar as mãos depois e, sem olhar para trás, montava na bicicleta velha, já muito desgastada e caía no meio do mundo rumando para o casebre um tanto em ruínas onde funcionava a padaria.
No caminho, ainda sob o luar e o rebuliço estelar, não encontrava vivalma, a lua em estando cheia e as estrelas brilhando lá no céu se tornavam suas únicas companhias no silêncio da madrugada. Ele procurava não pensar, nada valia a pena além do trabalho. Para ele a vida se resumia aos pães, nem mesmo os filhos davam o conforto de que sua alma necessitava. E cadê tempo para outras atividades mais amenas? Nunca uma vez sequer na vida sentiu qualquer raspa de amor no coração, esse tipo de sentimento não passava de lorota desprovida de sentido, no seu modo de pensar. Antonio Padeiro, na verdade, não passava de um homem azedo na mais forte concepção dessa palavra.
De certa feita, pedalando seu velho camelo no frio do horário nas ruas silenciosas, subitamente ouviu um ensurdecedor barulho numa esquina por onde passava, a poucas quadras da padaria, e sentiu até mesmo os cabelos do cu se arrepiarem de incontrolável medo. Aquele som macabro certamente não saíra de garganta humana, ele pensou. Seria o tal do lobisomem de que tanta gente falava? Estaria o danado do bicho amaldiçoado atacando alguém ou desembestando por aquelas bandas justamente no momento em que ele ia trabalhar? Pensou ele apressando as pedaladas e desviando a rota seguida, o coração saltando, arfante. Longe dele a covardia, é bem certo, muito longe mesmo, o sujeito até que não se apavorava à toa e não se tratava de alguém molenga que se urina todo ante qualquer insignificância, mas convenhamos com esse tipo de coisa esquisita e misteriosa ninguém podia brincar sem se machucar seriamente, quiçá mortalmente.
Não demorou muito e avistou dois enormes cachorros correndo esbaforidos, ambos grunhindo de pavor, com o rabo entre as patas, enquanto se ouvia no ar o rosnado ameaçador de algo indeterminado porque Antônio Padeiro não viu mais nada além dos cães aterrorizados fugindo velozes. O que teria acontecido para apavorar daquela maneira cachorrões capazes de intimidar um urso? Danada de coisa aquela. Lobisomem? Não pode constatar. Porém o que quer que fosse, e certamente era um monstro de grandes proporções, algo aterrorizador havia posto os brutos cães para correr. Além do mais, o barulho estranho e indefinido sobrevindo a seguir enregelou o sangue de Antonio Padeiro. Trêmulo, sem conseguir pedalar a bicicleta fubica, o coração quase a sair-lhe pela goela, agradeceu aos santos por não deparar com a fera que deixou escapar aquele rugido horripilante, mas seguramente deveria ser um bicho de grande poder e força. E o teria feito em pedacinhos.
Odiava visceralmente o trabalho a que se submetia para poder sustentar a esposa rechonchuda e a filharada trabalhosa e insubordinada. Pela própria vida, então, nutria veemente ódio, detestando-se visceralmente como se fora um leproso repugnante, como se vê, enfim, não gostava nem de si mesmo. Pão duro assumido ao extremo, no seu estabelecimento ele próprio era padeiro, forneiro e caixa da padaria. Nem a mulher nem os filhos o ajudavam no árduo trabalho cotidiano, deixando todo peso das responsabilidades sobre seus ombros já calejados e cansados.
Por essas e outras razões que sem dúvida o enlouqueciam, não dava a menor importância aos cuidados com a higiene nem aos ditames da limpeza. As inúmeras teias de aranha dançavam no telhado alto e nas paredes sujas, os ratos corriam de um canto para outro levando e trazendo pedaços de pão, e baratas atrevidas desfilavam alvoroçadas entrelaçando-se como se perdidas nas trilhas desconhecidas. E Antonio Padeiro, em meio a essa fauna nada deslumbrante, sendo ele mesmo partícipe dessa coletividade oriunda do descuido e do descaso, amassava a farinha de trigo numa espécie de caixão retangular comprido e fundo usando as mãos e os pés, o suor pingando abundante sobre a massa e se tornando ingrediente dos pães, biscoitos e bolachas de sua lavra. Não bastasse esse complemento esdrúxulo e indesejado, ele realmente cuspia em cada pão preparado antes de levá-los ao forno de barro a lenha. Era sua singela maneira de se vingar de todos.
Quando os pães quentinhos enchiam os balaios e se espalhavam pelo balcão, atraíam os incautos fregueses a quem Antonio Padeiro atendia sem lavar as mãos e nunca limpar a porcaria da sujeira escondida sob as unhas enegrecidas.
_ O senhor vai me atender com essas unhas pretas desse jeito?
Perguntou um incrédulo freguês inabitual, que tivera a triste idéia de aproximar-se da padaria, estando de passagem, ao sentir o odor dos pães quentinhos.
_ O que é que tem minhas unhas?
_ Ora, meu amigo, estão sujas...
_ Sujas, as minhas unhas? – Antonio Padeiro riu divertido – Cara isso não é nada, se você visse como os pães são feitos...
Completamente tomado pelo estupor e não conseguindo acreditar que ouvia daquele homem esses tamanhos absurdos insólitos, sem mais retrucar porque nenhum argumento adicional seria convincente nem conveniente ante o inusitado acontecimento, pasmo diante do absurdo daquela resposta inesperada, o quase freguês saiu da padaria e nunca mais voltou.