O VELHO "FIM DO MUNDO"

_Fim do Mundo tá mijado! Fim do mundo tá mijado!

Segurando uma bengala capenga que mal o ajudava a dar passadas trôpegas, o velhinho arrastava os pés sobre a calçada enquanto a molecada gritava zombando de sua calça úmida de urina. Outrora alto, mas agora curvado ao peso da idade, na expressão não mais aquele olhar endurecido que fazia tremer quem o encarasse, e considerando também a própria circunstância da incontinência urinária que o ridicularizava ante a vizinhança, a arrogância esmaecida e deteriorada pelo tempo já não parecia tão visível como há décadas.

_ Fim do Mundo mijou na calça! Fim do Mundo mijou na calça!

O pobre velhinho tentava apressar os passos pressionando o cajado e empurrando as pernas enquanto a garotada continuava a insultá-lo sem parar. Não lhe faltava lucidez, decerto, e resquícios da determinação que antes o caracterizara ainda perdurava em seus olhos metidos a alegres porém mortiços, mas Fim do Mundo já não mais atemorizava ninguém com a carranca de seu olhar antes penetrante. Transformara-se no palhaço da rua apesar dos cuidados de sua mulher Maricota, das filhas Dora e Odete, e do filho adotivo Djalma, que tentavam de tudo para não permitir-lhe sair de casa por causa dos vexames. Ele, ainda assim, usava de todas as artimanhas para ir até a calçada perscrutar a rua e as pessoas, ou então andar no rumo da casa de LN para conversar sobre sua infindável teoria sobre os dias finais do mundo. Somente ela tinha paciência suficiente para ouví-lo sem emitir críticas exarcerbadas contra seu persistente mau humor e desenganos.

Não havia nuvens naquela manhã, aliás como as insossas manhãs daquele lugar a claridade era senhora de todos os dias, nunca variava. Dias nublados não passavam de raridades. O céu estava azul e brilhante refletindo os raios solares e espelhando sobre a terra esturricada pelo calor. Entre as crianças apupando Fim do Mundo estavam o filho de Alexandrina, Ramon Jr., e um moleque da família dos homens lagartos, o mais novo deles, que ia passando nas imediações quando avistou a molecagem contra o pobre coitado e não podia deixar de aproveitar essa oportunidade de gaiatice com alguns bestalhões que se julgavam algo além de cagões.

As duas garotas rechonchudas da família Caminhão Fenemê, recostadas à porta da bodega do pai, abriram-se num sorriso largo de zombaria

Maria que Rincha estava na janela quando viu Fim do Mundo sendo vaiado pelos moleques, e quase sem perceber deu vazão àquele risinho equino que fazia o gáudio de todos das proximidades, e muito mais do que aos adultos também da garotada moleca.

_IHIHIHIHIHIHIHIHIHIH!! Não sou somente eu a ser machucada por esses moleques malcriados com apelidos horrorosos. Ihihihihihih! Fim do Mundo cabe bem na carapuça desse velhote besta, é um apelido por excelência para que as filhas dele botem o rabo entre as pernas.

Ficou apreciando empanturrada de satisfação aquela gritaria dos garotos apelidando o velho Adauto de Fim do Mundo, e, em seguida, a confusão sendo gerada com o súbito aparecimento de Djalma enxotando os moleques, que debandaram espalhando-se por várias direções. Ramon Jr. Escondeu-se atrás da algaroba ao pé da calçada de sua casa, sob o olhar silencioso da mãe debruçada sobre o parapeito da janela. Ela não o repreendeu nem se manifestou; o filhote de homem-lagarto saiu em disparada para o fim da rua, olhando para trás e fazendo gestos obscenos com o dedo em riste, e os demais correram para a esquina, contornando-a, às gargalhadas. As jovens gorduchas Caminhão Fenemê, que também, por sua vez, a tudo assistiam de longe e torcendo para o circo pegar fogo, desataram a rir sem se conter e ficaram cochichando entre si.

_Deixem meu pai em paz, moleques duma figa! Vão tomar no...!

Vestindo somente um calção que realçava a feiúra das pernas magrelas e do abdomen esquálido ladeado por costelas evidentes na pele escura, Djalma, descalço, segurando um livro de Humberto de Campos numa das mãos, o rosto enfurecido, pegou o pai pelo braço e o conduziu para casa. Maricota, sua mãe, apareceu no portão e ficou olhando irritada, balançando a cabeça. O marido dela, nos últimos tempos, não lhe dava mais nenhuma satisfação. Velho, deteriorado, acabado, mijando-se sem controle, servia somente de chacota para os moleques safados e para dar trabalho a ela e aos filhos. A ela principalmente, que já não tinha mais o marido forte e aguerrido de outrora, mas apenas aquele bebezão enorme, mijão e cagão transformado num palhaço de quem todos riam.

_ É por causa dessas coisas e de tanta falta de moral nesse mundo sem pé nem cabeça, essa porcaria de mundo cheia de miséria, que eu digo sempre que uma bomba violenta deveria explodir e matar todos de uma vez só. Não tem mais por que essa humanidade velha e nojenta continuar existindo. É preciso acabar tudo, explodir cada pedaço de chão! É chegada a hora do fim do mundo!

A voz, como insípidos petardos amorfos, fugia de sua garganta aos embargos, trêmula, tartamudeante. Fim do Mundo no entanto parecia lúcido suficiente para compreender as palavras gaguejantes saídas de sua boca.

_Ah, pai, pára com essa baboseira toda, deixe essa porra de lengalenga besta! É por causa dessas bobagens que o senhor diz, viu, é por isso que todo mundo chama o senhor de Fim do Mundo!

Djalma ofegava de tão enraivecido.

Mãe Outra surgiu na porta de sua casa e sorriu matreira.

“O velho Fim do Mundo está novamente dando seu espetáculo no meio da rua servindo de palhaço para essa molecada atrevida. Nada mais merecido para aquela parvalhona da Maroca, que se imagina com o rei e a corte toda na barriga. E as duas filhas dela, então, as balzaquianas que ficaram no caritó? Bem feito para elas também que são todas cheias de não me toque, aparecidas, metidas e feiosas”

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 23/06/2011
Código do texto: T3051828
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.