O POBRE PAPÃO
Papão assomou à esquina da ruazinha de maneira idêntica ao comportamento dos cães vadios vira-latas quando saem por aí sem rumo e não sabem as surpresas que vão encontrar em seu caminho, parando aqui e ali para farejar algo e depois seguir a esmo. Como o vento que a tudo invade na sua passagem alvoroçada, sem começo nem fim.
Andando a modo das molas quando são forçadas, subindo e descendo num ritmo engraçado porque tinha uma perna maior do que a outra, e, por conseguinte, o corpo torto para a esquerda, sobre o pescoço curto a cabeçorra do tamanho de uma melancia média, onde também se destacava o imenso nariz que facilmente poderia ser confundido com o bico do tucano, Papão causava medo principalmente às crianças e às mulheres. Baixo e mal vestido, muitas vezes a barba por fazer, é evidente que provocava repugnância em todos de quem se aproximava. Mas Papão, a exemplo de cada ser humano normal ou não em sua capacidade psíquica, bem como no tocante à aparência capaz de chamar a atenção ou assombrar, também sentia arder nas entranhas idênticas necessidades a esses inerentes. Precisava desesperadamente de carinho, de afeto intenso, de amor igualmente a qualquer outro semelhante. Sim, malgrado a deficiência mental não muito acentuada contudo presente, a transformá-lo em alguém indesejado nos círculos das pessoas sem tal problema, e apesar de seu aspecto quase monstruoso a afastá-lo da convivência natural Papão desejava ser amado. Pulsava-lhe no peito um coração transbordando de paixão e louco para expandir-se pelos liames dos sentimentos guias da vida, no recôndito aprisionava-se uma alma em busca de satisfação afetiva, e lá no mesmo lugar em que todos os homens a tem, sua genitália latejava na ânsia do aconchego oferecido pelo sexo oposto. Ele quase podia sentir no ar o cheiro da fêmea desejada, adivinhava-lhe a luxúria dos seios, das coxas, das nádegas, via-lhe o rebolado tentando seus olhos lúbricos, o carnudo dos lábios naquele rosto que tudo tinha para fazer de qualquer homem o ser mais completo e mais preciso.
O pai de Papão era barbeiro nas redondezas e passava o dia inteiro ocupado em seu ofício na barbearia improvisada na sala de estar de sua própria residência. Nesse ambiente simples e inadequado para o ofício a que se propunha buscava ganhar o sustento da numerosa família. O que sem dúvida não era nada fácil. Embora apenas Papão sofresse as indimensionáveis agruras de ser diferente de seus semelhantes em quase todos os sentidos, fato evidente a afastá-lo do cotidiano social, razão por que ele se mostrava revoltado e violento em muitas situações, todos os membros dessa família tinham por característica especial o epítome da feiúra no sentido mais profundo desse termo, tanto o pai quanto a mãe, filhos e filhas. Ao desmiolado Papão, no entanto, coubera o fardo mais pesado, a falha genética mais absoluta.
Marginalizado e excluído do viver em grupo, seus dias e anos eram passados na solidão e na tristeza sem compreender, sem mesmo querer compreender por que, no mero lampejo de lucidez em resquícios bem no fundo do complexo mundo mental em que vivia, não aceitava ser vítima dessa maldita armadilha do destino. Ninguém lhe dava sossego, nem as crianças ou sequer os adultos; aquelas o irritavam chamando-o de Papão e vaiando-o cruéis, sem misericórdia, estes isolando-o como se não fora ele também um animal social como todos os homens e mulheres desse mundo doido. Papão precisava de gente ao seu lado, de mãos amigas, de sorrisos, de uma mulher para ser sua. Como se percebe, ele anelava o impossível.
Daí ser tão arredio, desconfiado e macambúzio. Se o aborreciam, e isso acontecia amiúde, jogava pedras nos desafetos com a força descomunal do braço canhoto, errando o alvo poucas vezes. Que pontaria o danado tinha! Ai daquele que fosse atingido por suas pedradas certeiras.
Quando havia pau no sebo e gato no pote nas imediações de onde morava, o momento de lazer do qual participavam todos os moradores da redondeza aos bandos, fosse subindo e escorregando no poste ensebado, como parte do espetáculo que fazia o povo rir, fosse quebrando o pote e correndo atrás do gato que fugia aterrorizado ao escapar da prisão escura, dessem por certa a presença de Papão por lá. O paraíso, para ele, eram as multidões.
Seus familiares bem que tentavam segurá-lo em casa de todas as maneiras legais, ilegais, humanas e desumanas. Diversas vezes o amarraram ao pé da cajaraneira do quintal, onde a criatura desandava a gritar desvairado, se debatendo furioso, saltando, chutando o vento, pedindo para ser libertado. Trancá-lo no quarto foi outra tentativa de persuadi-lo a não ir vadiar pelas ruas, mas todos os esforços nesse sentido foram em vão. Papão preferia ver gente, mais ainda, estar perto de muita gente. Em especial das mulheres.
Vagou o olhar em todas as direções como à procura de algo que satisfizesse seu apetite por descobertas inesperadas. O sol castigava-lhe o rosto feioso, queimando sua pele enrugada Então, para extremo prazer de sua libido, avistou Lúcia. E de pronto apaixonou-se. Sim, ele a queria para si.
Lúcia acabara de sair à calçada trazendo ao colo um gatinho branco e entretinha-se em fazer-lhe cafunés que o deixavam ronronante e todo prazeroso entregue em suas mãos carinhosas. O bichano fechava os olhos preguiçosos, em seguida remexia manhoso e satisfeito as patinhas dianteiras e se aconchegava ao corpo da menina-moça, que ria entusiasmada com o jeito travesso do seu bichinho de estimação.
Papão aproximou-se perigosamente de Lúcia, ficando apenas a três metros de onde ela se encontrava. A jovem não se dera conta de sua presença furtiva, de tão entretida que estava com seu gatinho.
Carlúcio saiu à calçada nesse instante e avistou a aberração.
_ Ei, Papão! – Gritou enfurecido e fez o gesto agressivo de quem agarra um pedregulho para jogar no adversário. Ivan jogava descontraído e solitário o pião na areia quando ouviu o alerta de Carlúcio.
_ É Papão, é o bicho Ivan, cuidado!
Ivan, atabalhoado, virou-se já totalmente dominado pela imensa descarga de adrenalina em sua corrente sanguínea – todos odiavam e desprezavam Papão com todas as força de suas almas e corações.
Papão estancou, o fulgor da ira em seus rosto preparado para enfrentar quem quer que se metesse no caminho.
Nesse ínterim, despertando para a realidade do que acontecia ao seu derredor, Lúcia deixou escapar um grito afetado de medo e correu para a entrada da casa. Lá dentro, a mãe ouviu e saiu correndo para inteirar-se sobre o que ocorria. Encontrou a filha trêmula e o gatinho assustado nos braços dela, à porta e sem ação, depois, apavorada, enxergou Papão agachando-se para pegar pedras nas proximidades de sua calçada. Assustada, presa dum terror incontrolável gritou:
_Ah meu Deus do céu, é Papão! Entra, Lúcia, depressa, depressa!
Lúcia, atarantada, aterrorizada, saiu às carreiras na direção da mãe e as duas desapareceram no interior da casa, não sem antes trancarem a porta e as janelas.
Carlúcio e Ivan se juntaram para enxotar o peste do Papão, mas este, tomado pela raiva, jogou diversas pedras neles antes que pudessem arremessar-lhe um simples seixo. Uma das pedradas acertou de raspão a cabeça de Carlúcio e logo do seu rosto o sangue começou a escorrer, obrigando-o a refugiar-se porta adentro de sua casa. Aquilo doeu e magoou, e como! Enquanto isso as pessoas começavam a surgir nas janelas e nas entradas das casas, mas Papão já saíra em disparada fugindo do confronto. Ele bem sabia o quanto era odiado e escorraçado pela população inteira do bairro, tanto em virtude do medo que sentiam dele quanto pela indiferença que lhe devotavam. Evidentemente ninguém lhe daria a mão ou puniria por ele, ninguém ficaria do seu lado. O melhor mesmo, desse modo, seria a fuga salvadora.
A mãe de Carlúcio soltou um grito de agonia ao vê-lo ensangüentado. Correu até a cozinha e dela, rápida o mais que pode, agarrou do pó de café e passou a mão no pote de açúcar, pressurosa, aplicando ambos sobre a cabeça ferida. O cabelo do jovem ficou empapado com a inesperada mistura de sangue, café e açúcar.