MARIA QUE RINCHA E OS MOLEQUES
_ Mim da Burra! Mim da Burra!
Mais que apupos, punhaladas com palavras, balas de fogo através do infame apodo, um tiro de desprezo, dolorosa fisgada de anzol enferrujado. O pobre homem aleijado, a mão esquerda necrosada sobre a qual batia com a direita usando uma latinha suja, vestindo andrajos, esquálido, ar doentio, passava por ali ao acaso em busco do seu triste destino cotidiano quando fora avistado pela molecada. Seu nome? Não, não tinha um definido, desde que se conhecia por gente o chamavam Mim da Burra.
A poeira subia do barro seco da rua cobrindo as calçadas e quem ousasse enfrentar aquela manhã dimensionada por partículas de areia esvoaçando à força de repentinas ventanias que lembravam o sopro quente das chamas. O sol, que nem uma fogueira de astronômicas proporções, queimava as nuvens e recendia furioso nas pedras e nos postes de ferro em crescente processo de enferrujamento. A molecada não se importava com o o escaldar solar nem com as partículas poeirentas sobre eles, a passagem de Mim da Burra dava ânimo para a diversão à custa dos miseráveis.
_ Arre égua!
O mendigo usando um chapéu velho e tomado de buracos, roupas esfarrapadas que lhe deixavam à mostra as finas coxas esquálidas e os ombros ossudos batia de forma cadenciada a latinha enferrujada na própria mão direita sem vida. Desdentado, imensa barba e farto bigode emoldurando seu rosto, a cabeleira não cabia por inteiro no espaço da aba do chapéu. Um trapo certamente teria melhor aparência.
_ Mim da Burra! Mim da Burra! Já comeu a burra hoje?
O infeliz retorceu o rosto num esgar de amargura, os olhos súplices como a implorar que o deixassem em paz a caminho de seu atormentado cotidiano. Viver, apenas isso, era só o que queria se bem malgrado ser melhor para ele entregar-se à morte por causa das circunstâncias da sua vida miserável. Nem assim lhe permitiam. Algumas crianças não tem qualquer resquício de compaixão, desconhecem a misericórdia, são capazes de atrocidades iniludíveis e atos impactantes, assim o olhar piedoso de Mim da Burra não lhes despertou comoção. Longe disso, acirrou-lhes a crueldade. Sendo Mim da Burra a escória, na ótica delas deveria ser escorraçado sempre que fosse visto.
_ Já comeu a burra, Mim da Burra? Gostou, Mim da Burra?
Impossível encontrar brecha para escapar da sanha dos moleques, que usavam de todos os expedientes para maltratar o desafortunado mendigo. Passavam correndo ao seu lado e empurravam-no, cuspiam-lhe na roupa, jogavam-lhe areia no rosto.
_Arre égua!
Essas eram as únicas palavras pronunciadas por Mim da Burra enquanto os ataques dos espritados moleques continuavam impiedosos. A mão não parava de bater na outra, agora com mais rapidez e mais força. No ombro, o velho saco, sujo, cheio de bagulhos imprestáveis, amarrado ao braço da mão sem vida, chacoalhava de um lado para o outro conforme Mim da Burra procurava se esquivar das agressões.
_ Deixem o pobre homem em paz moleques de uma figa!
A voz saiu da janela de uma das casas, emoldurada pelo rosto engraçado de Maria que Rincha. Furiosa, brandindo ameaçadora o punho no ar, a mulher deixava que o rosto expressasse todo ódio contra o bando de pivetes que espezinhava aquele coitado do Mim da Burra.
_ Ei, é Maria que Rincha! Maria que Rincha! Maria que Rincha! Você é a burra de Mim da Burra?
Todos se voltaram contra ela passando a xingá-la, e seus esbravejos ecoavam chamando a atenção. Mim da Burra aproveitou para sair correndo e escapar daquela situação sempre cotidiana em seu triste viver, desaparecendo na primeira esquina que encontrou à sua frente, ficando a gritaria entre os moleques e Maria que Rincha, mas ela, finalmente, rubra de ódio, bateu a janela com força e silenciou.
A molecada, não havendo mais a quem xingar, aos poucos dispersou-se, alguns por ali jogando bola de pano, outros brincando de soltar pião, de tique, de tile, de jogar pedras em cães e gatos vadios, de ser desregrado num mundo melancólico onde a diversão era ser rebelde e não seguir qualquer conselho ou orientação. Alguns ainda tentaram amolar Maria que Rincha atirando pedregulhos em sua janela, não logrando seu intento porque ela preferiu engulir o orgulho a ter que enfrentar a malta lançando-lhe no rosto o apodo depreciativo. Em pouco, a rua acalmou, os moleques desapareceram permanecendo no ar tão-somente resquícios de mágoas, zombaria e malícia. A vida precisava continuar apesar de tudo.