O último gole

Estava eu no barzinho do Jiló, apoiado no balcão, falando pra ele da minha bravura. Falando de como nos meus tempos de moleque enfrentei um touro e um homenzarrão. Foi então que entrou, sem mais nem menos, Amaranto. Eu percebi pelo silêncio. Ninguém falou mais nada depois que ele entrou. Todo mundo com medo. Eu só fui ter certeza depois que ele chegou no balcão do meu lado e pediu uma geladinha. Eu olhei pra ele, mas só uma vez, depois fiquei vendo ele com o rabo de olho. Fiquei evitando encarar ele, né. Afinal, o homem é matador e se invoca com qualquer coisa. No mesmo dia tinha passado no jornal que ele matou um cara que estacionou o chevetinho na frente da casa dele. Aí tá pedindo pra morrer mesmo!

E o homem tinha um olhar de malvado! Deus-me-Livre! Nunca vi ele assim tão perto. Ele foi se sentar do outro lado do balcão e eu fiquei no meu canto. Aos poucos o pessoal voltou a conversar, mas baixinho.

Amaranto bebia e pegava uns amendoinzinhos e jogava pra cima. Caía na boca dele certinho. E eu lá bebendo na minha. O Jiló até sumiu, então não tinha mais com quem conversar.

Deu uns minutinhos, ouvi aquela voz: "Você sabe quanto deu o jogo dessa noite?" Era o Amaranto. "Acho que o Vasco perdeu." O Jiló apareceu de novo e eu pedi pra ele encher meu copo. Pra o homem tá falando comigo boa coisa não podia vir, então era melhor eu me preparar mais um pouco tomando um gole daqueles.

"Pra que time tu torce?" Vixe! Aí danou-se! Eu não sabia o time dele, era capaz de ser time que era rival do meu. Eu sou Fluminense. Ruim seria se eu fosse flamenguista e ele fluminense. Eu até pensei em dizer que não gosto de futebol, mas resolvi logo acabar com o medo e falar a verdade.

"Fluminense?" Ele até deu um sorrisinho. "Fluminense anda mal..." "Pois é..." "Sabe qual o meu time? América!" Eu me surprendi. Pra mim, o Amaranto ou era vascaíno ou era flamenguista.

"América tá se levantando: técnico novo chegando..." "Tá nada, rapaz! América tá uma porcaria! Esse meu time é uma droga!" "Mas ele ainda tem mais um jogo pra não cair pra segunda divisão!" Ele colocou o cigarro na boca e acendeu. "É... vamos ver..."

Ele foi se aproximando de mim. Ficou, assim, uns dois palmos de mim. E eu quase me borrando. "Gostei de ti! Tu é daqui?" "Eu sou, sou lá do Mata-Sete" Puta merda! Disse onde moro! "Pô! Do Mata-Sete!? Como é que nunca te vi lá?" "É que eu moro lá mais pro canto, quase em Santa Cruz". Ele deu uma fungada e voltou a conversar. "Aquilo ali tá crescendo, né? Eu to até pensando em montar um armazém ali, um mercadinho".

Nessa hora eu achei engraçado: Amaranto, matador, dono de mercadinho? É brincadeira!

"E tu, trabalha em quê?" "Açougue". "Mas o açougue é teu?" "É sim". "Qual é o nome?" "Não tem nome não; eu fiquei de pensar no nome e to até hoje pensando nele." Ele riu. Eu já tava desconfiado: Amaranto me perguntando onde moro, onde trabalho. Já tava quase certo na minha cabeça que eu ia morrer naquele bar naquele dia. Já tava sentindo aquela coceira no calcanhar. Devia ser o diabo tentando me pegar o pé pertinho da minha hora da morte. Mas eu fiz questão de parecer tranquilo. Não larguei da minha macheza!

"Já pensou em 'Boizão'?" "Já tem um com esse nome..." "Só Filé?" "Esse é bom!" "Gostou?" "Gostei!" Eu ia falar o quê? "Odiei!" Ele ia me matar na hora! Mas até que o nome era bom. Inclusive to usando ele hoje em dia.

Ele colocou a mão no bolso, aí eu pensei: "Pronto! Morri!" Acho até que prendi a respiração de tanto nervoso. Ele tirou um maço de cigarro do bolso e me ofereceu um. Eu na hora recusei. Mas suando frio!

"Gostei de ti! Gostei de ti!" Ele me disse dando uns tapinhas nas costas. "Olha, se tu precisar de alguma coisa, qualquer coisa, pode me chamar. Se alguém tive te perturbando, me liga, viu!" E me passou o telefone, anotado no papel. Eu me acalmei. Depois de pensar que quase ia morrer, virei amigo do matadorzão da cidade. Aliviei. Pra aliviar mais ainda ia tomar o resto do gole. Aí ouvi três tiros como se tivesse vindo de trás de mim. Rapaz, nessa hora eu só lembro de tudo ficar branco, foi como se tivesse apagado a minha memória o susto. Não ouvi mais nada, não vi mais nada. Quando abri os olhos, tava do outro lado do balcão agachado. Não levei nenhum tiro graças á Deus, mas o Amaranto morreu na hora. Uma senhora, mãe de uma das vítimas dele, apareceu lá com um revólver e meteu bala nele. Foram sete e eu só lembro de ouvir três. Tava aquele fuzuê, os homens tudo correram, depois voltaram para pegar a velha, controlar ela. E eu lá do outro lado do balcão, agachado. Tinha até me lembrado que ia beber o último gole (por pouco foi o último mesmo), mas agora não tinha nenhum copo na minha mão, nem por perto! Rapaz, não sei se bebi mesmo ou tomei o gole com copo e tudo. Na hora do medo o que uma pessoa não faz, né? A gente falando de filé e do nada um de nós virou presunto. A vida é assim...