Estilhaços de Tempo
Eu nasci no ano de 1990 e meu primeiro contato com a ‘dita cuja’ da educação se deu por volta do ano de 1996 quando eu fui para a minha primeira escola. Aquela onde seus pais te deixam e mesmo que você chore, você tem que ficar, pois é questão de disciplina. Os primeiros dias foram banhados por lágrimas e crianças se misturando em um vendaval de novidade, com o passar do tempo tudo foi se acalmando, a capitã do navio coordenava o ritmo dos pequenos marujos: “não saia da linha, contorne direito, firme o pulso.” E logo estes estavam em quase perfeita harmonia com o barco, trabalhando no balanço das ondas.
Depois veio o primário, as descobertas em forma de S, confundindo a pequena cabecinha que teimava em dizer que caza se escreve com Z, pois tem som de Z. E as divisões da matemática, onde Mariana perdia várias balas para que o professor pudesse ensinar quanto é 15 dividido por 3. As divisões do seu pequenino mundo em norte, sul, leste e oeste, a rotação e a translação, o dia e a noite, a pequena menina girando ao redor do sol e de si mesma, ao mesmo tempo. A história do bravo imperador de muitos nomes montado num cavalo branco, a espada levantada, a independência alcançada. O turbilhão de regras deixava a pequena menina tonta e seus pés logo tocavam o chão, numa tentativa frustrada de acordar deste sonho confuso.
Anos passados e a menininha confusa virou a adolescente decidida, as regras de ortografia não mais a perturbavam, eram o seu prazer, os inúmeros sujeitos e predicados e predicativo do sujeito eram a melhor forma que ela tinha para lembrar dos inúmeros sujeitos que a faziam pensar. As aulas de leitura onde ela viajava no mundo do personagem e com solavanco acordava dos seus 50 minutos de sonho, os primeiros poemas, as primeiras manifestações da paixão do escritor, as linhas ocultas dos pequenos haicais. Ela ainda não entendia porque Mariana continuava a perder balas em equações mais complicadas com chaves, parênteses e colchetes; continuava a não entender porque separar com vírgulas os números e porque quebrá-los em 1,97 1,98 e 1,99 se quando ela ia na lojinha de 1,99 da esquina a velha senhora do caixa dizia “Dois reais”.
As aulas de mapas de lugares inóspitos, os domingos perdidos no tal do Fernando de Noronha, deveras amaldiçoado pela adolescente em crise, as Rosas dos ventos e sua métrica confusa, os estados e capitais como o pobre fusca que queria Sergipe é a tentativa frustrada do Fluminense em fazer o ano todo, Natal.
As histórias de quem fez história contadas por gravuras dos livros, o nu renascentista e as bochechas coradas, o corpo em mudança. O famoso Hitler de bigode triangular chapliniano e suas tentativas horrendas de ser amado, os intermináveis estudos dirigidos de quatro folhas do professor ausente.
As aulas de ciências e as reações químicas, a mente fantasiada de pequeno cientista, as equações químicas incompreendidas e amadas, Diagrama de Linus Paulling e suas diversas camadas invisíveis, impossíveis, tentando caracterizar o pequeno elétron. Mendleiev transformando ouro e prata em metal pesado e a criptonita do super homem em gás nobre.
As aulas de artes e as figuras retilíneas, os manifestos surrealistas de artistas desprovidos de talento tentando futilmente imitar Van Gogh, os diversos tons daquele barquinho lá na linha do horizonte, lutando contra a maré para se manter navegando. A descoberta do talento para a música, as diversas coreografias com caras e bocas estilo Britney Spears, os teatros desde sua produção até a sua encenação, o nariz de palhaço, o centro das atenções, ela está declamando Shakespeare?
O Rock n’ Roll dos caras pintadas, cantando amor em palavras desconhecidas. O verbo TO BE que nunca é o que a gente espera e nunca está onde a gente precisa. Das provas orais de vocabulário simples às traduções de Mark Twain do menininho aventureiro. O Have you ever do Creedance, nos fazendo pensar naquela chuva tocando nossa pele.
Os grandes períodos literários, passados em uma semana como algo nada importante, como se Machado de Assis fosse apenas Bentinho, um garoto brincalhão que por vontade da mãe virou padre, um ato comum; como se Cecília Meireles fosse apenas uma das crianças de louras melenas, com mãos e pés de coral, sustentando no flanco o irmãozinho pequeno, sustentando nos braços o cachorrinho peludo, ou simplesmente - como expressão virginal da terra - levantando para o trem que passa uma flor que parece caída do sol.
As aulas de genética e os não-distinguíveis cromossomos, virando salada na prova de biologia. Onde cabelo se torna azul e olhos louros, mães se tornam pais e pais não se tornam.
A jornada da outrora menininha continua, mas hoje ela não mais tem problemas com as balas perdidas de Mariana, ela sempre doa mais balas. Seus números quebrados ainda existem, mas ela arredonda-os o quanto puder, hoje ela é a capitã de seu barco, que não mais é a escola, é a sua própria vida.