Derrames

Incapaz de suportar a claridade reveladora de um belo dia, ela esperou que o tempo fechasse para sair da cama, estava em cacos. Se o amor que ainda guardava em si pudesse falar, diria apenas que parasse de se arriscar, de se vender tão barato, de se desacreditar.

Mas ele não dizia nada. As conclusões eram todas mudas, irracionais. Gisele sequer escovou os dentes, foi direto para a cozinha, preparar um café instantâneo forte o suficiente para torná-la incapaz de voltar à estática. Precisava ser tomada novamente pela necessidade de expressão e movimento a qualquer custo, não agüentava mais aquela sensação generalizada de derrota.

Mas o leite ralo de tão desnatado não fervia, seu corpo não se aquecia, sua mente não parava de chorar, em silêncio, sem derramar qualquer lágrima, além da morbidez dos pensamentos. A mulher não se agüentava em si, ao mesmo tempo em que não queria se libertar – precisava da solidão e do sossego tanto quanto um criminoso precisa de um perdão, para ter espaço e motivos de voltar a se incriminar.

Não existiria jamais o equilíbrio dentro dela, a sua vida fora uma sucessão de atos impulsivos seguidos da melancolia, um convocando o outro, sem jamais se condensarem. Ou era insensata, ou era triste. Gisele jamais fora feliz. E talvez pela falta de intimidade com a realização, nunca pretendeu mais do que a loucura e o recolhimento. Quando tinha um nas mãos, mal brincava e se cansava, logo buscava o outro estado de ânimo e motivação para prosseguir errante. Naquele momento, o café seria providencial para a mudança de hábito.

Mas o leite não transbordava. A motivação não se apresentava, a tristeza não sedia. O mergulho, a cada novo instante desbravado, se tornava mais profundo. Gisele percebia que a volta para a superfície cada vez se tornava mais inalcançável.

O Leite ferveu, e transbordou pela leiteira, sujando todo o fogão. Gisele não se surpreendeu ou se esforçou para impedir o derrame, observou o fenômeno e nele viu um reflexo e uma saída. Tirou a leiteira do fogo e ao invés de encher a caneca, jogou o leite fervente dentro da própria boca. Sentiu-se derreter por dentro, se condensar em um único órgão: coração.

Sob o efeito do desespero, enfim pôs-se a gritar, por socorro, por amparo, por atenção. E como a dor da queimadura interna era insuportável, foi incapaz de conter o derrame de lágrimas. Aos prantos, ligou para a emergência, incapaz de explicar o ocorrido, apenas e chamou e esperou pelo socorro. Derramando-se em lágrimas, esquecera das amarguras, desejava apenas o romper da dor.

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Assiz de Andrade
Enviado por Assiz de Andrade em 18/06/2011
Reeditado em 18/06/2011
Código do texto: T3042929
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