SEU PAI, SUA PAZ
Não sei se foi providencial ou simples acaso o meu encontro com uma jovenzinha no centro de artes da universidade que visito. Professora, nutricionista, concertista, violinista...
Conversamos, enquanto ela aguardava o ensaio do coro universitário do qual participa. Voz soprano.
A princípio, só amenidades. Depois, esticamos nossa conversa acerca da família no mundo moderno.
Com sorriso às vezes leve, às vezes vibrante – que ainda denota expressões trazidas da adolescência –, ela me surpreende com a madureza dos seus argumentos.
Olhar meigo e gestos cativantes, ela também me emociona com sua percepção de família num mundo em mudanças – este em que vivemos. E até me faz um alerta para os malefícios hoje difundidos e praticados com intenções de desestruturar e desintegrar essa sagrada instituição milenar.
Ouvi, e bem, sua fala sobre a família elementar: seus membros, sua substância, sua essência... Mais me pareceu uma prece, seu simples falar. Ou uma canção erudita. Soberbo e delicioso argumento.
Minha jovem interlocutora não se atém à prodigalidade de interpretações estapafúrdias a que o tema se presta. Distanciada de excentricidades modernistas, atém-se, isto sim, à análise do núcleo da família, sem distinção do sentido que lhe seja dado, e à necessidade do seu crescimento apoiado essencialmente no amor.
Quisemos evitar, mas, em alguns momentos, terminamos divagando sobre a malícia de algumas propostas de mudança sub-reptícias, de resultados desastrosos, ocorridas dentro dessa estrutura milenária. Mas, pouco e pouco, fomos ilustrando nossa palestra com evidências a respeito das atitudes dignas de homens que se preparam para ser, na verdade, pais irrepreensíveis.
Do manancial dessa conversa fluiu, com suas palavras brandas, porém meio chorosas, o testemunho marcante dos bons exemplos praticados pelo seu genitor. Sua descrição me deixa muito feliz, principalmente por saber, pelos exemplos dados, que existem, de verdade, pais que, por se dedicarem com afinco à homogeneidade da família, se despreocupam da individualidade imposta, fundamentalmente, pela automação. Refiro-me ao infame arrastão dos novos tempos, em que o homem se permite ficar dependente por inteiro da máquina, com a qual pensa, age, produz, busca momentos de lazer e de prazer – e dorme – em detrimento dos seus deveres essenciais para com os semelhantes e familiares.
Existem – sabemos – pais guerreiros que se esquivam dessa dependência direta aos feitos e efeitos da máquina, e se doam, naturalmente e por inteiro, à abrangência estrutural da família. Disto resulta a fortificação do núcleo ao qual pertence, suas ramificações, seu tronco mais robusto e seu durame. Segue-se, daí, um relacionamento maior com outros núcleos igualmente fortes. Segue-se, também, depois de ética e moralmente filtrados, o rechaço coletivo ou o uso cauteloso e moderado dos modernismos em voga.
Pessoas dessa cepa mostram-se austeras para com os princípios éticos e a interrelação - com laços fortes no grupo -, entre os seus membros e aparentados. Preocupam-se com a formação moral, cultural e espiritual, de todos, mormente das gerações ascendentes. Dedicam-se à preservação dos valores, como preceitos e regras aceitos pelo núcleo e pela sociedade. E, essencialmente, se empenham pela manutenção e crescimento do afeto entre todos os membros desse grupo.
Estribado nesses pilares, sobre os quais as famílias deveriam estar apoiadas “in totum”, porque se trata de princípios que transcendem o amanhã, o pai de minha jovem amiga, a educa e, como bom educador, acompanha o seu desenvolvimento. Mostra-lhe, sem imposições, os caminhos do bem, da luz, da justiça, da verdade...
Caminha ao seu lado palmilhando veredas nem sempre retilíneas - aqui, ali, hostis, sinuosas e espinhosas.
Aponta-lhe horizontes, alguns ainda impossíveis de alcançar. Que a minha afável amiga saiba: apontar o impossível é lançar um desafio. É acreditar na obstinação do desafiado.
Evidentemente, sem apego a religiosidades, ele também lhe mostra os caminhos de Deus, os rastros que se devem seguir em busca da luz necessária ao uso da razão e ao benéfico exercício do amor ao próximo, aí contidos a solidariedade humana e o perdão.
Eu ri. Sei que ela ficou meio entediada, mas eu ri quando me disse haver confessado ao pai o cometimento de alguns pequenos erros. Coisas que somente aos amigos mais íntimos a gente conta. Errinhos cometidos com certa ingenuidade, sim, mas quem não os comete? Por isso, eu ri. Ora, essa garota felizona é tão humana quanto eu, quanto o seu pai, quanto qualquer vivente racional!... Todos temos o direito de errar – e o dever do adequado reparo. Todavia, a importância maior dessa confissão, a meu ver, está na qualidade da reação do confessor. O pai a ouve, mas não lhe impõe qualquer punição por conta das “pequenas” malícias confessadas. Ao invés, ele a ajuda na superação, da mesma forma como o faria se as falhas fossem consideradas insuperáveis. Esse pai jamais reagiria qual uma autoridade que a algemasse ou que a sentenciasse... Ele reage com inolvidável maestria. Põe-se no lugar da filha e, com ela, busca soluções. Reflete com ela na escolha da melhor saída. Oferece-lhe um ombro amigo. Aí, ela se sente segura e protegida com sua orientação e seu amparo. Isso é o bastante para que o respeite muito mais como pai e o escute como um sábio.
Um sábio que é pai, mestre, amigo e confessor. Esse presente Deus manda para todos os seus filhos pousados na terra. Lamentavelmente, alguns pacotes se abrem ou se desguiam no meio do caminho!
Marejaram lágrimas nos olhos daquela garota tão alegre de há poucos instantes.
Ela me diz, sussurrando, que o seu sábio voltou para Deus na antevéspera do último Natal ! . .
Seu sábio e pai, amigo e mestre. Seu confessor... Não consegue deter as lágrimas quando redescobre estas qualidades na pessoa que lhe ensinou a viver. Diz que, doravante, seus Natais ficarão sem graça!...
Tento mudar sua opinião. Trouxe-lhe à memória que é essa a festa em que se comemora o nascimento de Cristo. É a festa em que comemoramos o renascimento de tudo. É a festa da gratidão, da reconciliação, da renovação dos abraços, da troca de presentes e de carinhos. É a festa da família, do perdão... Literalmente, não é dia de se jogar a toalha. Lembro que todo o proceder do seu pai teve o objetivo de lhe fazer feliz. Para a felicidade maior do pai, ela precisa mostrar-se feliz, sempre, sobretudo nesse dia de luz, de Jesus e de paz.
- Chorar faz bem! - Afirmei. É uma amostra da inquietude da alma. Esse sentimento minha amiga vai renovar, de forma cada vez mais pungente, em especial quando algo lhe lembrar a perda desse pai valioso, divinal, incomum no nosso hoje.
Feliz é o homem que merece lágrimas quando se distancia do seu núcleo.
Não lhe perguntei como, onde, por causa de que ou quando aconteceu a incisão no sonho desse homem bem-aventurado, porque amado. Basta a minha convicção de ele haver cumprido, com muita sabedoria, a nobre missão de semeador no plano terreno. Missão que, com muita alegria, a bela jovem vai dar continuidade junto aos que lhe cercam e que com ele conviveram.
Resta-nos aceitar a enorme perda com a linguagem íntima das lágrimas. Contudo, ouso dizer-lhe que a morte pode não significar ausência absoluta. Esse pai vai estar - precisa estar - presente em suas relembranças: num parque infantil, na livraria onde ele sempre ia, nos passeios matinais ou dominicais, na sua escrivaninha, nos encontros da família... Que ela torne prediletas essas veredas.
Faço-a ver que estamos todos a caminhar. Somos palmas situadas no ápice de uma palmeira de tronco indiviso e crescimento infinito. Algumas palmas podem ser subtraídas pelos ventos, prematuramente. Outras, de consistência durativa, permanecem até que o tempo consuma todos os elementos vitais do seu organismo. É próprio da natureza. Uma realidade imutável. Somos, na Terra, todos, um rascunho dos projetos de Deus. Nós, os viventes, nos inquietamos com algumas intervenções não habituais e intempestivas do Projetista, que tudo traça no plano intemporal.
Nasceu, desse encontro casual, uma amizade efêmera que valeu a pena. Com o sentimento de pai, vejo-a, agora, no ensaio do coral, vibrando as cordas do seu violino, ora cantando, ora fingindo que está sorrindo.
Que o seu pai, cada vez lembrado, signifique sua felicidade e sua paz.
Não sei se foi providencial ou simples acaso o meu encontro com uma jovenzinha no centro de artes da universidade que visito. Professora, nutricionista, concertista, violinista...
Conversamos, enquanto ela aguardava o ensaio do coro universitário do qual participa. Voz soprano.
A princípio, só amenidades. Depois, esticamos nossa conversa acerca da família no mundo moderno.
Com sorriso às vezes leve, às vezes vibrante – que ainda denota expressões trazidas da adolescência –, ela me surpreende com a madureza dos seus argumentos.
Olhar meigo e gestos cativantes, ela também me emociona com sua percepção de família num mundo em mudanças – este em que vivemos. E até me faz um alerta para os malefícios hoje difundidos e praticados com intenções de desestruturar e desintegrar essa sagrada instituição milenar.
Ouvi, e bem, sua fala sobre a família elementar: seus membros, sua substância, sua essência... Mais me pareceu uma prece, seu simples falar. Ou uma canção erudita. Soberbo e delicioso argumento.
Minha jovem interlocutora não se atém à prodigalidade de interpretações estapafúrdias a que o tema se presta. Distanciada de excentricidades modernistas, atém-se, isto sim, à análise do núcleo da família, sem distinção do sentido que lhe seja dado, e à necessidade do seu crescimento apoiado essencialmente no amor.
Quisemos evitar, mas, em alguns momentos, terminamos divagando sobre a malícia de algumas propostas de mudança sub-reptícias, de resultados desastrosos, ocorridas dentro dessa estrutura milenária. Mas, pouco e pouco, fomos ilustrando nossa palestra com evidências a respeito das atitudes dignas de homens que se preparam para ser, na verdade, pais irrepreensíveis.
Do manancial dessa conversa fluiu, com suas palavras brandas, porém meio chorosas, o testemunho marcante dos bons exemplos praticados pelo seu genitor. Sua descrição me deixa muito feliz, principalmente por saber, pelos exemplos dados, que existem, de verdade, pais que, por se dedicarem com afinco à homogeneidade da família, se despreocupam da individualidade imposta, fundamentalmente, pela automação. Refiro-me ao infame arrastão dos novos tempos, em que o homem se permite ficar dependente por inteiro da máquina, com a qual pensa, age, produz, busca momentos de lazer e de prazer – e dorme – em detrimento dos seus deveres essenciais para com os semelhantes e familiares.
Existem – sabemos – pais guerreiros que se esquivam dessa dependência direta aos feitos e efeitos da máquina, e se doam, naturalmente e por inteiro, à abrangência estrutural da família. Disto resulta a fortificação do núcleo ao qual pertence, suas ramificações, seu tronco mais robusto e seu durame. Segue-se, daí, um relacionamento maior com outros núcleos igualmente fortes. Segue-se, também, depois de ética e moralmente filtrados, o rechaço coletivo ou o uso cauteloso e moderado dos modernismos em voga.
Pessoas dessa cepa mostram-se austeras para com os princípios éticos e a interrelação - com laços fortes no grupo -, entre os seus membros e aparentados. Preocupam-se com a formação moral, cultural e espiritual, de todos, mormente das gerações ascendentes. Dedicam-se à preservação dos valores, como preceitos e regras aceitos pelo núcleo e pela sociedade. E, essencialmente, se empenham pela manutenção e crescimento do afeto entre todos os membros desse grupo.
Estribado nesses pilares, sobre os quais as famílias deveriam estar apoiadas “in totum”, porque se trata de princípios que transcendem o amanhã, o pai de minha jovem amiga, a educa e, como bom educador, acompanha o seu desenvolvimento. Mostra-lhe, sem imposições, os caminhos do bem, da luz, da justiça, da verdade...
Caminha ao seu lado palmilhando veredas nem sempre retilíneas - aqui, ali, hostis, sinuosas e espinhosas.
Aponta-lhe horizontes, alguns ainda impossíveis de alcançar. Que a minha afável amiga saiba: apontar o impossível é lançar um desafio. É acreditar na obstinação do desafiado.
Evidentemente, sem apego a religiosidades, ele também lhe mostra os caminhos de Deus, os rastros que se devem seguir em busca da luz necessária ao uso da razão e ao benéfico exercício do amor ao próximo, aí contidos a solidariedade humana e o perdão.
Eu ri. Sei que ela ficou meio entediada, mas eu ri quando me disse haver confessado ao pai o cometimento de alguns pequenos erros. Coisas que somente aos amigos mais íntimos a gente conta. Errinhos cometidos com certa ingenuidade, sim, mas quem não os comete? Por isso, eu ri. Ora, essa garota felizona é tão humana quanto eu, quanto o seu pai, quanto qualquer vivente racional!... Todos temos o direito de errar – e o dever do adequado reparo. Todavia, a importância maior dessa confissão, a meu ver, está na qualidade da reação do confessor. O pai a ouve, mas não lhe impõe qualquer punição por conta das “pequenas” malícias confessadas. Ao invés, ele a ajuda na superação, da mesma forma como o faria se as falhas fossem consideradas insuperáveis. Esse pai jamais reagiria qual uma autoridade que a algemasse ou que a sentenciasse... Ele reage com inolvidável maestria. Põe-se no lugar da filha e, com ela, busca soluções. Reflete com ela na escolha da melhor saída. Oferece-lhe um ombro amigo. Aí, ela se sente segura e protegida com sua orientação e seu amparo. Isso é o bastante para que o respeite muito mais como pai e o escute como um sábio.
Um sábio que é pai, mestre, amigo e confessor. Esse presente Deus manda para todos os seus filhos pousados na terra. Lamentavelmente, alguns pacotes se abrem ou se desguiam no meio do caminho!
Marejaram lágrimas nos olhos daquela garota tão alegre de há poucos instantes.
Ela me diz, sussurrando, que o seu sábio voltou para Deus na antevéspera do último Natal ! . .
Seu sábio e pai, amigo e mestre. Seu confessor... Não consegue deter as lágrimas quando redescobre estas qualidades na pessoa que lhe ensinou a viver. Diz que, doravante, seus Natais ficarão sem graça!...
Tento mudar sua opinião. Trouxe-lhe à memória que é essa a festa em que se comemora o nascimento de Cristo. É a festa em que comemoramos o renascimento de tudo. É a festa da gratidão, da reconciliação, da renovação dos abraços, da troca de presentes e de carinhos. É a festa da família, do perdão... Literalmente, não é dia de se jogar a toalha. Lembro que todo o proceder do seu pai teve o objetivo de lhe fazer feliz. Para a felicidade maior do pai, ela precisa mostrar-se feliz, sempre, sobretudo nesse dia de luz, de Jesus e de paz.
- Chorar faz bem! - Afirmei. É uma amostra da inquietude da alma. Esse sentimento minha amiga vai renovar, de forma cada vez mais pungente, em especial quando algo lhe lembrar a perda desse pai valioso, divinal, incomum no nosso hoje.
Feliz é o homem que merece lágrimas quando se distancia do seu núcleo.
Não lhe perguntei como, onde, por causa de que ou quando aconteceu a incisão no sonho desse homem bem-aventurado, porque amado. Basta a minha convicção de ele haver cumprido, com muita sabedoria, a nobre missão de semeador no plano terreno. Missão que, com muita alegria, a bela jovem vai dar continuidade junto aos que lhe cercam e que com ele conviveram.
Resta-nos aceitar a enorme perda com a linguagem íntima das lágrimas. Contudo, ouso dizer-lhe que a morte pode não significar ausência absoluta. Esse pai vai estar - precisa estar - presente em suas relembranças: num parque infantil, na livraria onde ele sempre ia, nos passeios matinais ou dominicais, na sua escrivaninha, nos encontros da família... Que ela torne prediletas essas veredas.
Faço-a ver que estamos todos a caminhar. Somos palmas situadas no ápice de uma palmeira de tronco indiviso e crescimento infinito. Algumas palmas podem ser subtraídas pelos ventos, prematuramente. Outras, de consistência durativa, permanecem até que o tempo consuma todos os elementos vitais do seu organismo. É próprio da natureza. Uma realidade imutável. Somos, na Terra, todos, um rascunho dos projetos de Deus. Nós, os viventes, nos inquietamos com algumas intervenções não habituais e intempestivas do Projetista, que tudo traça no plano intemporal.
Nasceu, desse encontro casual, uma amizade efêmera que valeu a pena. Com o sentimento de pai, vejo-a, agora, no ensaio do coral, vibrando as cordas do seu violino, ora cantando, ora fingindo que está sorrindo.
Que o seu pai, cada vez lembrado, signifique sua felicidade e sua paz.