GSEMO OREQU
Quando ele decidiu cortar todas as árvores do quintal, remover as trepadeiras do caramanchão e pintar de verde os dois leões de pedra existentes à entrada da propriedade, a família concluiu que, de facto, Honório estava doente. Ainda assim ninguém quis arrostar com a sua ira e, embora desolados com o novo aspeto da casa agora exposta como um acidente no deserto, calaram-se para ver se as coisas serenavam. No dia seguinte, porém, Honório assentaria, sem ordem, os azulejos onde se estampavam, letra a letra, as palavras Gomes Roque, apelido da família. Quem chegasse deparava, a encimar o arco do portão, com o escrito gsemo orequ, misterioso e agressivo como um anátema ou um feitiço, avesso a qualquer leitura e disposto de modo estranho ao local e à casa. Quando o filho o chamou à atenção para a troca na ordem dos azulejos, abriu a navalha e golpeou-o, repetidamente, nos braços, nas mãos e no rosto. Aos gritos acudiu Josefa, a mulher, Maria, a nora, Antunes, o zelador. Todos foram poucos para dominar o homem que continuou por muito tempo a enrolar-se no pó do terreno até sucumbir ao cansaço. Chamado o médico foi dopado e recolheu à cama. Os sedativos iam sendo aplicados antes que o doente pudesse recuperar a força que o tornava perigosamente violento para todos. Deitado, deixava, por fim, afagar-se e pode mesmo ser amado pela Josefa que dedicou à vigília e aos cuidados sanitários a sua principal função. Com o rodar dos meses, Honório, tornado à força uma espécie de estátua jacente, foi perdendo o pouco que lhe restava de capacidades. Se a principio não se lembrava de como se chamava o filho ou que designação tinha um copo ou uma colher, em breve passaria a não entender, de todo, o que lhe diziam. A seguir perdeu o vocabulário mínimo que destinava a pedir água, comida ou a sinalizar a necessidade da arrastadeira. Focava os olhos no tecto, enrijecia os membros e gemia uma toada de sons, sempre iguais, enquanto o sono o não remetesse para um roncar profundo, soluçante e cavernoso. Havia dias em que, com menor dose de medicação, parecia perceber a conversa. Nessas alturas fazia esforços para se levantar e, muitas vezes, caía do leito exigindo que viessem os vizinhos para ajudar a recolocá-lo na cama. Depois foi-se degradando cada vez mais, deixou de engolir e tornou-se, definitivamente, num vegetal que respirava. Tardou a morte longos cinco anos.
Depois do funeral, Josefa foi para Paris com o filho e a nora. Já nada mais havia para fazer e não lhe agradou a ideia de ficar só no casarão de família entretanto posto à venda. O pior foi a mudança, a coexistência com a família num espaço exíguo no centro da capital francesa, a submissão às regras da casa onde havia gente de trabalho que precisava de silêncio à noite que era quando a ela, Josefa, lhe dava para prantear o defunto em choro alto, gente que queria arranjar-se para sair quando ela queria ficar horas no único lavabo do apartamento e, enfim, a certeza de que lá ninguém estava para lhe aturar a tirania no tocante às escolhas quer dos programas de TV quer da ementa a ser elaborada. Ralhos, amuos, silêncios e lágrimas passaram a dominar a casa e todos os seus habitantes. Raul Roque, o filho, passou mesmo a tomar calmantes para poder suportar-lhe o mau génio e Maria, a nora, fugia da sala logo que a altercação diária acontecia. Josefa sofria e fazia sofrer a sua gente, agora vista como oponente. Dizia-se seca e que era urgente voltar à sua casa, que já não queria vender, ao seu lugar em Portugal. Imaginava-se a zelar por uma campa que haveria de mandar fazer e preferia estar só com as suas ideias, necessidades e ritmos enquanto as pernas lhe suportassem o peso e a cabeça pudesse presidir ao rudimentar da vida. Voltou.
Nos primeiros dias do regresso, arrumou roupas, esvaziou os armários, ofereceu os fatos, escolheu objectos para uma espécie de culto ao marido e alienou os que, ao longo da vida em comum eram tidos como um suplício, tal como o acordeão que Honório tocava sem saber alinhar mais que meia dúzia de notas em sequência repetida até à náusea, durante horas. Casara com ele apesar do seu mau feitio. Ia nos vinte e cinco e estava à beira de permanecer virgem, solteira, tia. Não deixou que conselhos e zangas lhe mudassem o destino e, mesmo sem amor, decidiu que seria a sua vez de mudar de terra, de vida, de condição. Aturou-lhe, portanto, os egoísmos, as irracionalidades, as bebedeiras e acomodou-se a tudo para evitar que ele, sempre grosseiro e feroz, lhe batesse. Tiveram um filho, emigraram, fizeram pela vida em França até à aposentadoria de ambos. Fora um tempo de mágoas, de isolamento, silêncios e dores. A mulher bonita que era deu lugar à esposa fria e madura e, a seguir, à velha revoltada e agreste em que se tornara pela força de uma frustração que lhe vinha do mais profundo de si mesma. Quando casou achou que o mudaria, que à força de ternura o levaria a ser um bom cidadão, um bom chefe de família e um bom pai. Tudo coisas que se não realizaram. O filho cresceu sem amor do pai e com a indiferença da mãe muito mais apostada a livrar-se do marido que empenhada em educar o rapaz. Quando, finalmente, Honório deixou de poder mandar em tudo e em todos, começou Josefa a ser feliz. Muito tempo o tivera ali, imóvel, sofredor, inapto e as reservas de amor que nunca foi possível dedicar-lhe na saúde vieram amenizar os dias, as noites e a tarefa de cuidar dele. Saía quando se impunha, vestia o que achava mais certo, cuidava-se muito mais. Misturava o francês com o vernáculo, assobiava modinhas da terra e detestava a vizinhança porque não queria intimidades nem confiança. Para ela, Honório deveria ficar assim para sempre. Exactamente por isso gritou quando o perdeu e acusou o pessoal de enfermagem de o ter sufocado de propósito. Calou-se quando a ameaçaram com a autópsia e com as consequências de uma queixa contra ela que não teria como provar o que dizia aos gritos para quem a quisesse ouvir. E, agora, ali estava, vestida de preto, enrugada e triste, dolorosamente incapaz de se integrar com a vizinhança e já sem o seu Honório para lhe justificar os dias.
Gastava o tempo a olhar o movimento da rua sentada à janela, atrás da cortina de renda. Via sem ser vista. Sonhava, lia, inventava. Falava com o defunto. Eram acertos antigos, vozes por tantos anos caladas, ternuras que em vida ele recusou. Vez por outra arrastava o carrinho das compras aproveitando para ver gente e esticar as pernas. Ficava, horas, varrendo ou lavando o passeio, sempre atenta aos recados que julgava receber dele e respondendo de acordo. De França um ou outro telefonema apaziguava consciências e fazia com que Josefa ainda se percebesse com família. A verdade é que a vida parecia encolher-se no restrito dos seus atos, na recusa de contactos, no culto de um ódio antigo à vizinha do lado. Foi-se misturando com as sombras da sala e do quarto, depois com a escuridão em que se abrigava de devassas. Via-se menos, deixou que os cabelos voltassem a ser brancos e que as unhas perdessem o antigo esmalte vermelho. Definhou. Um dia, descorada e maltratada, saiu para as compras e foi apupada pelas crianças que iam para a Escola. Bruxa, velha, fantasma, chamaram-lhe puxando-a pela aba do casaco. Onde guardas a vassoura em que voas? Acrescentavam. E Josefa recolheu a sua casa. Tingiu de ruivo o cabelo, como dantes, pintou-se primorosamente, vestiu o vestido de seda vermelha, fechou a casa e saiu sem destino. Dizem que a ideia seria morrer junto à campa de Honório mas acabou por se finar, sentada na esplanada central da terra, em frente ao copo de laranjada.
FIM
Edgardo Xavier