Uma estranha história do Dia dos Namorados...
Há cerca de dez anos, saí de minha cidade natal e vim morar em Pelotas/RS. Divorciada, com quase 50 anos, vim sozinha, sem conhecer quase ninguém, lecionar aqui e fazer meu Mestrado (e Posterior Doutorado) em Educação.
Tenho duas filhas e um filho, já adultos, com suas vidas organizadas, trabalhando e com relacionamentos estáveis. Dois residiam em minha cidade natal e a outra filha em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Era o meu primeiro Dia dos Namorados em Pelotas. É claro que meus filhos não viriam passar este dia junto comigo, nem eu desejaria, pois teriam de se afastar de suas atividades normais e seus amores, ou com eles vir, o que seria um transtorno ainda maior. Mas eles estavam preocupados com minha solidão, que julgavam eles, seria maior ainda do que a habitual.
O Dia dos Namorados, durante muitos anos, me foi um dia triste e melancólico. Neste ano em que vim morar aqui, não seria diferente.
Perto do meio dia, atravessei a Praça Coronel Pedro Osório, a praça central da cidade, com antigas árvores e povoada de lembranças para mim - pois para aqui vinha nas férias, em minha mocidade, e foi onde conheci o Amor da minha vida e era onde passeávamos... Eu estava com lágrimas nos olhos... e com o meu habitual sorriso (pois penso que minha tristeza não deve perturbar a quem quer que seja. Quem se sente bem passando na rua por uma mulher triste ou chorando, ou, pior ainda, de “cara amarrada”? Ainda mais no Dia dos Namorados!)
Fui a um Restaurante de porte médio, limpo, tranqüilo, mas que eu sabia sem muito movimento, e sentei à mesa em um cantinho, perto da porta de entrada. Não estava com fome; mas sabia que algo tinha de comer.
Enquanto olhava o Cardápio que o atencioso garçom me trouxera, entrou, timidamente um pobre homem encolhido, encurvado, tímido, com a barba por fazer, com roupas sujas. Não tinha como não vê-lo. Tirou o chapéu surrado, remexeu os bolsos e contou algumas moedas. Perguntou:
- O que posso comer com esse dinheiro?
O encarregado de entregar as papeletas na porta para registrar o que seria consumido, disse-lhe:
- Senhor, não dá pra nada! Por favor, vá embora!
- Mas eu tenho dinheiro e estou com fome! Eu não vou roubar nada!
Pude perceber pela voz do homem que ele estava alcoolizado ou era alcoólatra. Não tinha aparência de quem se drogasse e seus gestos e modo de falar me pareceram de um homem educado.
Logo veio o gerente ou proprietário, não sei, e disse de modo rude:
- Fora, cara! Vai espantar meus clientes! Fora!
O homem tremia e insistia que iria pagar, só queria comer alguma coisa. Levantei e fui em poucos passos até a entrada. Disse ao gerente com voz firme:
- Ele vai entrar e almoçar em minha mesa! É MEU CONVIDADO!
O pobre homem me olhou, assustado, pensando talvez que fosse um gracejo: uma senhora o convidar para sentar em “sua mesa?”
Disse a ele:
- Venha, senhor! Minha mesa é esta aqui!
Ainda sem acreditar, ficou titubeando, mas segurei delicadamente seu braço e o conduzi para minha mesa. Os olhares de todos se voltaram para nós. Havia casais de namorados, famílias, pessoas sós, todas bem vestidas; os olhares variavam: surpresa, escandalização, zombaria... Mas eu sempre me preocupei muito pouco com o que pensam ou dizem de mim: o que sempre me preocupou foi ter a consciência tranqüila e poder deitar à noite e dormir em Paz, afirmando: “Se amanhã eu acordar, Deus estará comigo. Se eu não acordar, eu estarei com Ele!”...
Constrangido, o homem sentou-se. Passei-lhe o cardápio e disse:
- Escolha o que desejar. Não se sinta constrangido. O senhor está me fazendo um grande bem em me acompanhar no dia de hoje. – Uma lágrima teimosa escorregou, sem que eu a pudesse evitar... – O senhor sabe ler? – E aí quem se sentiu constrangida fui eu ao fazer a pergunta. Ele poderia sentir-se humilhado e eu não queria isso, jamais!
- Sim, senhora! Eu sei ler! Eu fiz até Faculdade! Mas este vício desgraçado me jogou na sarjeta!...
- Vício não! O alcoolismo é uma doença, uma dependência química, e é difícil, mas pode ser curado!
- Senhora, eu perdi tudo pela maldita cachaça!!
- Senhor, vamos escolher o que vamos comer e vamos conversar! Mais uma vez obrigada pela sua companhia!
- A senhora não se envergonha de estar sentada aqui comigo?
- Não.
- Meus filhos têm vergonha de mim... – E lágrimas silenciosas escorreram pelo seu rosto...
O garçom trouxe o almoço, intrigado com aquela situação inusitada. Disse-me baixinho:
- Cuidado senhora! A senhora já notou a sujeira dele?
Sorri e nada disse. Pedimos suco de laranja para acompanhar a refeição. O Gerente me fuzilava com os olhos!... Mas eu há muito eu tinha perdido o medo de “caras feias!...”
Começamos a conversar; perguntei-lhe seu nome: ele apenas disse o prenome...*, não mencionou sobrenome. Fiz o mesmo, disse-lhe “Eu sou B...” A expressão de seus olhos era bondosa, apesar de demonstrarem que eram olhos de quem sofre de alcoolismo. Contou-me que vinha de uma família de “classe média”, havia estudado e tinha feito a Faculdade de...*, casado com três filhos, que também haviam estudado e “se formado”, que ele tinha tido uma pequena empresa, mas o álcool sempre fora “sua perdição” e foi bebendo mais, e mais, até que perdeu a empresa, os filhos e a esposa, pois após muito tentarem que ele abandonasse o álcool, o “correram de casa” porque ele “dava vexame, bastava beber um pouquinho” e agora estava ali, vivendo sozinho, na rua... Mas que não conseguia largar o “vício”...
Falei-lhe que tinha três filhos também, que cantava no Coral de minha Igreja, disse-lhe qual Igreja e que trabalhava e estudava.
De repente perguntei:
- O senhor já tentou os Alcoólicos Anônimos, os AA?
- Ah, senhora! Eu tenho vergonha! Lá tem gente que me conheceu no tempo “que eu era gente” e hoje estou irreconhecível! Tenho muita vergonha! Eu moro na rua!...
- O senhor não vale menos que qualquer outra pessoa criada por Deus!
- Ah, senhora! A senhora não sabe o que me dizem, o que fazem comigo!!... Eu acredito em Deus, a senhora sabe? Mas quando eu entro numa Igreja, me correm de lá! Acham que vou roubar! Mas eu só quero rezar... Eu sei que ando “mal-cheiroso, mal vestido”, sujo; veja minhas unhas! Mas não sou ladrão!
Havíamos acabado o almoço. Disse-lhe que precisava ir. Estendeu-me a mão agradecendo o almoço, mas logo a recolheu, percebendo o quanto estava suja. A linguagem educada, o modo de comer, atestou que era um homem que tinha tido uma boa educação. Sua história deveria ser verdade.
À saída do restaurante agradeceu-me muitas vezes a atenção recebida; disse que há muito ninguém o ouvia nem conversava com ele; que eu fosse muito abençoada por Deus.
Disse-lhe então que lhe pediria um favor.
- A senhora me pedindo um favor?
- Sim! O senhor vai me prometer que vai procurar os AA e não vai ter vergonha de ir lá! E que não vai desistir desta vez! E quero um dia, receber notícias suas e saber que o senhor está completamente limpo! Este é o presente e o favor que lhe peço! Se realmente é o que quer, Deus lhe dará forças! E obrigada por sua companhia!
Os olhos do homem encheram-se outra vez de lágrimas, limpando-os num trapo sujo que trazia em seu bolso.
- Prometo. Mas como vou encontrar a senhora para lhe dar notícias?
- Pergunte por mim na minha Igreja, a...*, sou a única com o meu nome que canta no Coral!
Os anos se passaram. Não vi mais aquele homem. Não tenho muito tempo de andar pela rua, e nunca mais o vi. Acabei esquecendo a história...
Hoje, nove anos depois, Dia dos Namorados, tocaram a campainha. Uma de minhas filhas que está passando o final de semana comigo, atendeu. E me disse:
- Mamãe! Recebeste flores! Um buquê de rosas amarelas! Lindas! E não tem cartão, “tem uma carta!” – disse brincando comigo.
Estranhei, pois não espero flores no Dia dos Namorados. Nem presentes. Nem lembranças, a não serem "as minhas recordações..."
Pedi para minha filha colocar as rosas em um vaso e abri a carta, em cujo envelope constava apenas “À Senhora Professora B...”, sem sobrenome; sem remetente. Desconfiada de que fosse uma brincadeira de mau gosto ou enviada por alguma pessoa de quem eu jamais gostaria de receber flores, li.
A letra era firme e o português correto:
“Professora, sou o ...*, aquele mendigo que há nove anos a senhora bondosamente “convidou” para almoçar no Restaurante ...* no Dia dos Namorados. A senhora me fez prometer que eu procuraria os AA. Procurei. Foi muito difícil no começo. Fui bem recebido, como a senhora me disse! Foram tempos difíceis, mas bem menos difíceis do que os que passei na rua. Graças a Deus e à senhora tornei-me “gente” outra vez! Recuperei minha auto-estima, minha esposa, meus filhos, noras, genro e netos! Trabalho agora como sócio de uma empresa, no mesmo ramo da que eu possuía. Entrei como funcionário e cresci na empresa. Hoje, neste Dia dos Namorados, estou reunido à minha Família e não estou mais só! Freqüento a Comunidade Católica ...* Como agora estou bem e completamente recuperado e não sabia seu nome completo e endereço, perguntei a uma pessoa do Coral de sua Igreja que conheço. Ele deu-me o endereço. Envio-lhe estas rosas com todo o respeito e o meu agradecimento e o de minha família. Estamos ao seu inteiro dispor! Não há palavras que consigam agradecer o que a senhora fez por mim. Agradeço também aos amigos do AA, mas, se os procurei, foi pelo seu incentivo. Apenas posso dizer-lhe “Deus a abençoe!...”E o nosso desejo de que nunca mais passe o Dia dos Namorados sozinha, pois a senhora merece todo o amor do mundo!
Com nosso respeitoso carinho,
...* e Família”
As lágrimas rolaram, e muitas! Nem minha filha sabia do que havia ocorrido há nove anos.
Bem, eu permaneço “sozinha” no Dia dos Namorados...
Mas meu coração está acompanhado pelas vozes dos Anjos que me dizem “Missão cumprida! Fica em Paz!...”
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Nota: * Os nomes não foram mencionados para preservar a identidade dos envolvidos.