Luxúria
Cigarros pela metade, copos esvaziados em grandes goles, The Smiths tocando baixo no rádio em cima da mesa, eis nosso cenário.
Daqui de dentro a vista não é assim tão fascinante, cada um em um canto do quarto, no seu mundo particular.
Ela sentada na cama, laptop aberto ao lado, xícara de café na mão. Rói as unhas num estado de nervosismo, não consegue se concentrar, não consegue escrever o próximo capítulo do livro que deseja lançar no fim do ano. Estacionou no meio do drama entre o personagem principal e seu grande amor, que dilema.
Ele está sentado na poltrona defronte à janela, fumando o que ele diz ser seu último cigarro esse ano, deseja parar. A mão balança pra lá e pra cá um copo com vodka, movimentos leves, como se apreciasse as ondas que se formam vagarosamente. Um olhar para o céu, perde-se em pensamentos... sobre o seu namoro, suas vontades e desejos.
Ela observa o perfil dele na janela, os anéis de fumaça que desprendem da boca semi aberta, as mãos firmes que levam o copo até a boca numa tentativa de calar os pensamentos. O jeans já gasto, usado apenas para ficar em casa, a camiseta branca colada no corpo, tudo é ele, o jeito dele que ela conhece tão bem. De certa forma isso lhe é inspirador, volta a escrever com rapidez com medo que as idéias sumam da cabeça num piscar de olhos.
Ele estranha o barulho repentino das teclas sendo empurradas abaixo no teclado, tudo tão rápido, ela se inspirou de novo? Agora ele é quem observa a figura feminina logo ao lado, o cabelo preso num coque no alto da cabeça, a franja que cai levemente sobre o olho e que ela, impaciente, tenta botar atrás da orelha vez ou outra. Os óculos refletem a tela em branco que é constantemente preenchida por um mar de letras, a regata deixa o ombro esquerdo nu, o jeans rasgado é antigo, usa pra se isolar do mundo quando está em casa. Ele solta um riso contido, ela lhe devolve o olhar rapidamente. Entendem-se sem palavras.
Muita gente sente inveja dessa relação de amor-irmão, dessa sintonia incrivelmente simples que existe ali. Há quem inveje a beleza dos dois, o bom humor quando estão juntos, o estilo que vão moldando um no outro com o passar dos meses... tudo. Há sempre quem os inveje, não importa aonde vão. E eles sabem disso.
Mas ali, naquele quarto, são reclusos num universo inteiramente desconhecido aos outros. Ali o álcool serve de auxílio pro divertimento em dias ridículos e para as noites agitadas. No rádio as músicas se alternam entre um folk suave e um rock agitado, os cigarros amassados na lixeira demonstram o nervosismo constante sobre certos assuntos, as xícaras pelos cantos contém marcas de batom e dentes.
O dia começa e termina ali. Pecam diariamente numa tentativa de sair da nostalgia constante. São donos de um poder de sedução e influência incríveis, e usam isso sempre a seu favor. Muitos morrem de amores, outros de ódio, mas eles sempre são notados. Para eles o inferno é o máximo, e a vida é só um passatempo.