DONA LU E SEUS DOIS MARIDOS

Luzia casou-se com Mauro no início dos anos setenta, Tinha vinte e dois anos e trabalhava como doméstica do seu Valter, comerciante bem sucedido na cidade em que eles moravam. Desde que viera da Paraíba, Luzia trabalhava com a família do seu Valter. Era tratada como gente da família, querida por dona Vera, a esposa do comerciante, pelo único filho do casal, e pelo irmão do seu Valter, um padre que morava com eles.
O casamento dela com o Mauro não agradou muito a família do patrão. O primeiro motivo foi o fato de a Luzia ter que dividir seu tempo entre a nova família que ela ia criar e a família do comerciante, com quem ela morava e dedicava tempo integral. O outro era o noivo, que não agradava nem um pouco à família do ser Valter.
Esse desconforto tinha um motivo. Mauro era um cara pobre. Não tinha estudo, trabalhava numa fábrica como operário de produção,era um indivíduo sem profissão e, o que era pior, sem a menor ambição na vida, pois em cinco anos trabalhando naquela fábrica, nunca procurara subir de posto. Tanto o seu Valter quanto a sua mulher, dona Vera, que viam na Lu, como eles a chamavam, procuraram abrir os olhos dela. “Olha bem o que você está fazendo, menina”, disseram eles. “Será que esse cara vai poder lhe dar uma vida digna? Ele parece muito ser um sujeito muito acomodado”.
E era mesmo. Mas amor e amor é amor, e parecia que a Lu estava mesmo apaixonada pelo cara e não arredou pé. Queria ter a família dela e o Mauro era a chance de realizar esse sonho. Poderia até continuar a trabalhar com eles até enquanto desse, enquanto não viessem os filhos, mas casar ela ia de qualquer jeito.
E casou. Continuou trabalhando até o nascimento do primeiro filho, a Luizinha, que ganhou esse nome em homenagem à patroa, que continuava ajudando-a em troca de umas diárias semanais que ela fazia na casa dos antigos patrões. E assim foi durante mais de dez anos, no decorrer dos quais Luzia e Mauro tiveram três filhos. Durante esse tempo ela cuidou da própria família e trabalhou como diarista para seu Valter e Dona Luíza. E assim continuou pelos próximos dez anos, período no qual os filhos de Luzia e Mauro cresceram, o filho único do Seu Valter morreu, o irmão padre também passou desta para a melhor, o próprio Seu Valter prosperou ainda mais no seu comércio.
Mas o Mauro, esse sim, não mudou em nada. Continuou sendo um sujeito acomodado, sem ambição, preguiçoso e extremamente folgado, como sempre foi. E também muito mentiroso e irresponsável, como se revelou depois do casamento.
Isso Luzia nunca perdoou nele. Quando eles namoravam, Mauro passara para ela a idéia de que ele era um sujeito muito responsável e dedicado à família. Dizia que pagava a faculdade do irmão mais novo, que ajudava no sustento da família, que assumira o lugar do pai, que morrera quando ele tinha treze anos, mas era tudo mentira. Na verdade, ele sempre tinha sido mais ajudado pelo irmão mais novo e pela mãe, do que ajudava a eles. O pequeno salário que ganhava na fábrica onde trabalhava ele gastava tudo com roupas, bilhar, cigarros e outras formas de diversão. O salário dele não durava dez dias. Fazia um monte de carnês em lojas, e vários deles não conseguia nem pagar. Tinha o nome sujo no SPC e nenhum banco lhe dava talão de cheques. Sempre tinha alguém na porta da sua casa cobrando dívidas que ele fazia na rua.
Na metade do mês lá estava ele raspando as economias da mãe viúva, que dava um duro danado para ganhar uns trocos vendendo roupas usadas e lavando roupa para três ou quatro fregueses.

Nos vinte anos que Luzia esteve como o Mauro, eles nunca saíram para comer fora, nem para fazer um passeio para algum lugar. A única viagem que ela fez nesse tempo foi uma vez em que ela foi de ônibus ao Nordeste com seus três filhos ainda pequenos, para mostrá-los à sua família paraibana. Mas adivinhem quem pagou a conta: o seu Valter, claro.
Só havia duas coisas que o Mauro realmente gostava na vida. Futebol e música caipira. Quando chegava em casa, depois do serviço, sua diversão era correr para o sofá e ligar a TV procurando programa sertanejo. Luzia morria de raiva com isso.
Durante esse tempo eles foram despejados por falta de pagamento de aluguel umas cinco vezes. Até que o irmão caçula do Mauro, cansado de pagar os aluguéis atrasados do irmão, comprou um terreninho na periferia da cidade e fez para eles, com as próprias mãos, uma casinha, a qual ampliou no decorrer de dois anos,até transformá-la numa razoável residência de três quartos. Mauro não ajudou a assentar um único tijolo, mas Luzia carregou lata de massa e tijolos para a laje e fazia almoço todo fim de semana para os voluntários que o cunhado arrebanhava para trabalhar na construção. Também nunca disse uma palavra de agradecimento ao irmão e ás pessoas que construíram e deram a casa para eles. A única coisa que ele comentou à respeito era que a casa era longe do centro da cidade. O cara era folgado mesmo.
Luzia brigava com Mauro desde o primeiro ano do casamento. Ela não suportava a acomodação dele e nem a irresponsabilidade com o marido tratava as coisas da vida. Comprar objetos que não podia pagar; A vergonha de ter sempre a água e luz cortadas por falta de pagamento. O caminhão da loja parado em frente da sua casa recolhendo os móveis que não foram pagos. Os móveis sendo postos na rua em cumprimento de ordens de despejo. Ter que ficar pedindo dinheiro emprestado para o cunhado, para a sogra, para o seu Valter...

Depois de vinte anos nessa vida, todo mundo achava que a Luzia já havia se acostumado com isso. Pois já há algum tempo ela parara de reclamar do Mauro. Durante vinte anos, nos almoços dos natais que eram invariavelmente feitos na casa da sogra, o que se via era sempre a briga que começava durante o almoço e continuava pela tarde inteira. O motivo era sempre o mesmo: as diatribes da Luzia contra o Mauro. Estranhamente, nos últimos dois anos ela não brigou, não reclamara, não cobrara, não xingara o Mauro, nem acusara a sogra, a quem ela julgava ser a grande responsável pelo filho ser daquele jeito, pois era ela que o havia criado assim.
Provavelmente a razão dessa aparente calmaria seria o fato de ela ter voltado a trabalhar com o Seu Valter, agora viúvo e sozinho, depois da morte do seu filho único e da sua esposa Vera. Com certeza o antigo patrão estava lhe pagando um bom salário, pois as agruras pelas quais eles passavam antes, aparentemente desapareceram. Na casa deles, agora, havia TV a cores, a casa fora pintada de novo, geladeira nova, móveis novos, ela e os filhos andavam bem vestidos, o Mauro nunca mais pedira dinheiro emprestado para o irmão e para a mãe, os caminhões das lojas não apareciam mais para levar os móveis não pagos, as companhias de luz e água nunca mais vieram cortar o fornecimento, e assim por diante.
O emprego da Luzia devia ser o responsável pela aparente prosperidade da família, pois do Mauro era que isso não vinha. Ao contrário, o cara continuava cada vez mais irresponsável, mentiroso, folgado e acomodado do que antes. Nos últimos cinco anos já mudara de emprego umas cinco vezes. Eram todos empregos arranjados pelo seu irmão caçula, que então se tornara um advogado bem sucedido, ou pelo Seu Valter, o patrão da sua mulher. O que ganhava não dava nem para o cigarro que ele continuava a fumar e para a cervejinha que aprendera a tomar todos os dias. Tinha até ganhado um apelido no bairro onde morava. Era o “Bartira”, pois segundo as más línguas, tudo que ele ganhava, o bar tirava.

Os parentes e conhecidos do Mauro até se surpreenderam por vê-lo em restaurantes nos fins de semana, almoçando com a família, e em algumas festas, coisas que ele nunca fizera antes. Assim, não era verdade aquele pressuposto de que as pessoas, depois de certa idade, não mudam. Mauro estava mudando depois de velho. Afinal ele já estava com mais de cinqüenta. E sempre, nessas ocasiões, com eles estava o seu Valter. Parecia que a família havia adotado o velho patrão e eles viviam todos juntos. Havia harmonia entre eles. Notava-se isso pelo comportamento do Mauro, bastante educado para com o patrão de Luíza, dos filhos do casal, que o tratavam com carinho, e da própria Luzia, pois isso já sabido de todos, sempre se comportara como se fosse da família do seu Valter.
Passou-se bem uns cinco anos até que as pessoas descobrissem o arranjo que a Luíza havia feito. Na verdade, desde que a esposa do seu Valter morrera, ela passara a cuidar do velho patrão. Não demorou muito para ir parar na cama dele. O velho, que estava aí pelos seus setenta anos, ainda estava com algum vigor. Mais até que o Mauro, que com os seus cinqüenta anos de idade e mais de vinte de casamento, já não comparecia o suficiente.
O Mauro era um cara folgado, mas não era bobo. Logo sacou o lance. Percebeu que a coisa estava rolando entre a mulher e o patrão, mas também viu que havia vantagens nisso. A sobrevivência estava garantida, a grana para o cigarro e a cerveja entrava sem esforço, as brigas e as cobranças da mulher acabaram, os filhos tinham todas as necessidades providas. A paz e sobrevivência , trocadas pela honra, lhe pareceu um bom arranjo. Dessa forma, ele se engajou no negócio sem constrangimento nem outras dores de consciência.
E assim teria sido até o fim da sua vida se algumas pessoas, especialmente seu irmão caçula e alguns amigos mais chegados não tivessem a indelicadeza de chumbar ao seu já constrangedor apelido de Bartira o vergonhoso carimbo de corno.
Ah! Sim. Todo o resto ele podia ser, mas corno não. Então ele brigou com a Luzia pela última vez. A briga foi de mentirinha, mas o divórcio foi de verdade. Seu Valter pagou o advogado Luzia casou-se com ele. Mudou de cama, mas só oficialmente. Extra oficialmente continuou dormindo nas duas. Segunda ela mesma disse para uma amiga mais chegada, o Mauro, depois que se livrou da responsabilidade de vez, voltou a ser aquele menino do primeiro ano de casamento. E o Valter era um provedor de primeira.
Mauro disse a todo mundo que ele era um homem divorciado, por isso não corno não era. Acalmou sua honra e consciência desse modo. Valter também ficou feliz porque agora tinha uma nova família.
Eles ainda são vistos juntos nos restaurantes e nas festas. Mauro, os filhos, Luzia e o Seu Valter. Na mesma harmonia de sempre. Todas as pessoas já se acostumaram com a estranha família. Luzia nunca foi uma morena bonita como a alegre personagem de Jorge Amado, que viúva, conseguiu manter o espírito do falecido Vadico ao seu lado graças ao clima sensual que havia entre eles. E quando fazia amor com o segundo marido, o pacato farmacêutico Teodoro, era com a fantasia do falecido que ela encontrava o seu prazer. Não sei se a mesma coisa acontece com a Luzia, mas há quem diga, sem maldade nem chacota, que a Dona Lu foi mais competente que a Dona Flor. Pois ela tem dois maridos, e ambos vivos. Assim, não precisa nem fantasiar.




João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 09/06/2011
Reeditado em 13/06/2011
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