Viagem Literária
Seimon Kandir, eu pensava sobre o holocausto. Enquanto a noite avançava triste sobre a rodoviária, sentada nos bancos da sala de espera. E Henry Quyuk também estava com sua despreocupação corriqueira sobre mutação genética, morros uivantes na Rússia, cumes inalcançáveis e histórias de avô. Gary Stand By esta parada com alguma preocupação no olhar, disfarçando com piadas sobre o tempo, o espaço, a viagem. Adam Pope esta tranqüilo com seu penteado e seu sorriso, e teme não sofrer de amor ou não dar risadas trágicas. Ele tem uma mochila carregada, com inclusive uma cômica panela pendurada (mais tarde seria a nossa salvação em uma madrugada pobre e faminta na beira de uma fogueira heróica). Alguém pergunta, “Woody Lee Jay, você não vai se despedir da cidade?”, mas é tarde demais, os motores já fazem barulho e fumaça suficiente para distrair qualquer atenção. Terminamos o cigarro coletivo e nos apertamos para perto do ônibus. Eu levo na mochila o indispensável para poucos dias. A barraca, duas garrafas de conhaque, o fumo (este ficou comigo, porque da última vez Stand By perdeu quase 30 gramas na praia sem explicação e ficamos todos remoendo aquele ódio perverso e tivemos que fazer drinks fortes com o que tivesse por perto; cachaça e limão, ou qualquer fruto que pudesse ser apanhado sem esforços), algumas roupas. S. K. guarda o LSD na bateria do seu celular e eu me pergunto se as interferências magnéticas não irão interferir no efeito do nosso ácido. E fico rindo da possibilidade da gente tomar e virar uns eletrodomésticos gigantes fazedores de causo! É uma chapação literária. E o tempo passa e eu penso sobre algumas “literary highs” como nos almoços nus lobaratoriais de drogas experimentais e venenos para baratas que os caras injetam. “é uma viagem kafkaniana, você se sente como um inseto”. Cara demais aquilo! Eu pensei sério vários dias sobre aquilo, e pensei em acordar como um liquidificador dentro da minha barraca. E de fato nossos cérebros automatizam com o tempo, nos transformam como máquinas. “eu preciso levar você para conhecer alguns rapazes da Interzone!”. Cara eu não caio nessa, nem vou fazer minha sessão diária a lá Guilherme Tell.
Mas dando seqüência aos fatos – e não fatos às seqüências – nós sentamos no ônibus para cruzar alguns poucos quilômetros e depois descer numa rodoviária vazia, escura, fria, deserta e suja (que só viríamos ‘habitada’ quando estivéssemos voltando da viagem, mas aí aquelas pessoas todas pareceriam seres extraordinários para nós) para esperar uma Kombi branca vir de uma estrada de terra e nos pegar, aí levariam aqueles chapados para um festival de música livre. Paz e amor. Onde? Acho um saco essa coisa de “paz e amor”, ou “festival de música livre”, não cola mais sabe? Nunca existiu isso. Stand falaria, se pudesse ler meus pensamentos “Paz e amor? É.. uh... só!”. E antes da Kombi chegar a gente deu boas vindas ao final de semana e fechou um baseado ultraprofissional, forte pra caralho que nos chapou junto com o conhaque que já começava a nos esquentar. E dentro da Kombi a gente dava risada de alguma coisa que alguém falou, mas na verdade caminhávamos para o escuro-infinito-ameaçador que nos engolia cada vez mais e era só mato ou escuro. Ou os dois. Também era de se esperar que as coisas dessem errado. E deram. Lentamente o tempo fechou e começou a chover vagarosamente sobre a nossa cabeça. Todos chapados, no escuro e no barro molhado tentavam montar uma barraca que eu nunca tinha visto antes. Eram incríveis seis barras de ferro entrelaçadas e difíceis pra caralho de se juntar. E veio mais gente nos ajudar, até que finalmente conseguimos terminar o trabalho, enquanto uma banda da Suécia tocava (uma música ruim demais, como todas outras que tocaram ali, mas aquela se destacava...).
“Woody Lee Jay, você não vai se divertir conosco?” dizia uma das árvores com sorriso onírico, e eu com a complacência dos seres vivos apenas olhei para seu rosto e a encarei. Aquele deserto verde musgo chapado e fechado com grades.... eu podia ver teias de aranhas nos pensamentos deles, montanhas de lama nas barracas deles, e eles circulavam no deserto molhado como heróis mostrando suas armaduras, enquanto eu me refugiava com S. K e os garotos numa cobertura agradável de madeira. Henry Q. se me passava o conhaque, Stand e Adam conversavam sobre amenidades. Alguma coisa ali me fazia lembrar um grande circo, não dos horrores, tampouco dos prazeres, um circo imaginário. Outra vez Bill Lee me diz “it’s a literary high!” e aquele veneno amarelo de barata acaba e ele precisa de mais.
Mas tudo é impermanente eu sei, e aquelas pessoas se apegam a uma fantasia falsa. Eu só me divirto com os garotos, pulando em poças de lama. E como o anjo da desolação eu viajo do céu para casa, eu estive no inferno e sei tudo sobre o holocauso. Seimon junta fôlego com sua melhor roupa e se decompõe friamente em barro espacial, geléia matinal – bosta. Viagens de ácido. Não preciso entrar na parte das ‘trips’, não preciso entrar nos confins escuros da mente também, para dizer o que existe lá. Nada. Essa é nossa vida, nossa (in)verdade e essa foi nosso entretenimento passageiro. Como Adam e seu cabelo escovado no primeiro dia, e como ele ficou maltrapilho e sujo no último dia, enquanto a gente voltava por uma cidade pequena e bonita do interior. Pequenos fatos juntos da nossa amizade, enquanto os outros nos vêem com olhares agressores e a gente da risada da folha voando pela rua. Nós somos bons amigos na verdade, explorando algumas cidades desconhecidas para descolar um pouco de diversão e não importam os conceitos ou as bases filosóficas que se enfiam no meio disso tudo. É só um tempo gasto com bobagens divertidas. E o tempo passa, mas não nos deixa mais solitário dentro de nós mesmo, porque nos alimentamos de lembranças.