PRIMEIRA CONFISSÃO

Sábado

Nove da manhã dos anos 80, estávamos na sala da catequese do colégio das freiras. Aquela algazarra enquanto ansiosos esperávamos a irmã Rosa e a irmã Eliza, freiras ucranianas que sempre andavam com seus hábitos típicos.

Domingo seria o grande dia, depois de vários meses de preparação e aprendizado, a primeira comunhão.

Irmã Rosa conseguiu acalmar o alvoroço da turma depois de alguns minutos. Fizemos á oração. Depois ela simpaticamente novamente explicou como seria o dia de amanhã e fomos ensaiar na igreja a cerimônia e o ritual da primeira comunhão e da confissão.

Tumulto no caminho da sala de catequese até a igreja, trinta e cinco crianças na faixa etária de oito anos correndo e gritando. Na porta da igreja levamos a primeira reprimenda da irmã Eliza:

- Silêncio! Agora vamos entrar na casa de Deus, devemos ter respeito!!!

Irmã Rosa relembrou das vestimentas obrigatórias na cerimônia, meninos calça social azul, sapatos pretos, camisa branca manga longa e gravata borboleta; meninas vestido branco e sandálias brancas. Ensaio geral da cerimônia e missa da primeira comunhão: fila indiana por ordem de tamanho para entrar na igreja; meninos no lado direito; meninas do lado esquerdo; ordem e procedimentos para receber a hóstia.

Em seguida irmã Eliza nos falou da confissão e que deveríamos chegar até as 8:00 horas da manhã para fazermos a confissão com o padre Marciano. Irmã Eliza alertou que quem não fizesse a confissão no horário não receberia a primeira comunhão e iria ter que fazer novamente a catequese no ano que vem. Acho que ninguém queria levantar todo sábado de manhã durante um ano inteiro fazendo sol, frio ou chuva.

No confessionário o ensaio era individual, a irmã fazia o papel do padre. Enquanto um estava no confessionário, os outros esperavam em silêncio sentados nos bancos da igreja. Em silêncio até o segundo sair do confessionário, começou com um burburinho e foi se transformando naquela algazarra dentro da igreja. A irmã Eliza interrompe a festa e a segunda reprimenda veio ríspida:

- Silêncio!!! Seus colegas estão ensaiando a confissão!!!

E ameaçou:

- Se continuar esta bagunça, vocês não farão a primeira comunhão este ano!!!

O silêncio voltava na igreja. Por poucos minutos é claro! O burburinho começava baixinho e em pouco tempo virava algazarra.

Após todos terem ensaiado a confissão, as últimas orientações das freiras foram passadas. Entre elas deveríamos aproveitar o período da tarde para fazermos nossa lista de pecados e foi autorizado anotar num papel e na hora da confissão ler nossos pecados para o padre.

Fizemos á oração e fui embora correndo para almoçar. Minha mãe tinha separado um prato de comida, pois se deixasse nas panelas meus irmãos, mortos de fome, teriam devorado tudo.

Após o almoço fui brincar com meus amigos no mato onde o rio faz a volta. Voltei sujo e encardido, minha mãe disse:

- Vai tomar banho piá!!! Enquanto eu preparo um cuque de banana, pois teus primos virão para o almoço amanhã!

Fui tomar banho pensando que ainda tinha que fazer a lista de meus pecados. Pensei que iria ser fácil, mas não foi. Como é difícil achar os pecados, ainda mais quando se é uma inocente criança. Não conseguia colocar os pecados no papel, e na catequese as irmãs falaram um monte sobre pecado, num teve jeito tive que consultar o catecismo para verificar o que era pecado:

Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas.

Não invocar o Seu santo nome em vão.

Guardar os domingos e festas.

Honrar pai e mãe.

Não matar.

Não pecar contra a castidade.

Não furtar.

Não levantar falsos testemunhos

Não desejar a mulher do próximo.

Não cobiçar as coisas alheias.

Depois de muito tempo procurando meus pecados estava cansado. Terminei de fazer e minha lista constava os pecados de toda criança daquela época: desrespeitar os pais, brigar com algum colega, mentir, matar ou caçar passarinho, e mais algum pecado que colocava na lista para ter o que dizer para o padre na hora da confissão, mesmo que não tivesse cometido.

Eu estava preocupado com um pecado que estava na última linha da lista e que me atormentou. Este pecado não deveria estar na lista de nenhum de meus colegas e só parei de pensar nele quando peguei no sono, depois do jantar.

Domingo

Minha mãe acordou-me cedo, tomei o café que ela já havia preparado, e fui me vestir. A gravata borboleta me apertava o pescoço. Cheguei cedo à igreja, morava bem próximo. Meus amigos já estavam lá, todos iguaizinhos: calça azul, camisa branca e gravata borboleta, claro que alguns colocavam a gravata borboleta no meio da camisa e não na gola, o que era motivo de gargalhadas pra todos. As meninas nos seus vestidos brancos.

A irmã nos chamou para organizar a fila da confissão, primeiro fizemos a oração. Meninos do lado direito do confessionário e as meninas do lado esquerdo. Enquanto estava na fila o pecado que me atormentou ontem ressurgiu. Ele estava na lista que eu carregava no bolso da calça. Eu estava em dúvida se deveria confessá-lo, ou não, ao padre.

Estávamos todos em silêncio, quietos e mudos, o padre não estava ainda e algazarra também não veio hoje. Em fila aguardando e o pecado martelando na minha cabeça. Eu estava preocupado com o pecado descrito na última linha de minha lista, a mão dentro do bolso mexia e remexia o papelzinho da lista.

O padre Marciano chegou. Meus pensamentos voaram longe: será que ele é de Marte? Será que ele veio num disco voador? Onde será que ele guarda a espaçonave? Será ele é um alienígena? E usava roupas de padre para esconder alguma coisa?

Olhando bem, ele tinha uma fisionomia diferente, era meia altura, gordo e na cintura parecia um barril, e usava óculos de fundo de garrafa, será que ele não era marciano mesmo?

Meus devaneios foram interrompidos por um afetuoso e sorridente padre, que disse:

- Bom dia crianças!

Todos nós respondemos o bom dia, alguns em tom forte e outros, como eu, receosos, malmente abrindo a boca. Ele continuou:

- Tudo bem com vocês?

E fez uma breve explanação sobre confissão e pediu para que ninguém tivesse medo e nem vergonha de confessar. E depois se dirigiu para o confessionário e o primeiro “toc toc” surgiu.

Duas batidas na madeira do confessionário, o sinal do padre para que o primeiro da fila fosse ao confessionário para a confissão. Passados alguns minutos saiu Josef, vermelho igual um pimentão, coisa normal para quem é descendente de ucranianos e polacos, e foi direto para os bancos onde se ajoelhou e deveria estar cumprindo a penitência imposta pelo padre.

Em seguida outro “toc toc”, agora foi uma menina. E depois mais “toc toc” e um piá, e assim foram alternadamente entrando piás e meninas. Minha vez estava chegando, o “toc toc” me angustiava.

Uns continuavam saindo com o rosto vermelho, outros sorridentes, e alguns estavam normais. Outro “toc toc” e agora somente um na minha frente.

Minha vez. Estava aguardando o “toc toc” do padre no confessionário, acabei nem ouvindo, estava com pensamentos no último pecado descrito em minha lista. João Teodósio, que estava atrás na fila, que me cutucou.

De cabeça baixa fui para o confessionário, entrei, ajoelhei fazendo o sinal da cruz, e não cumprimentei o padre. O padre falou algumas palavras que de tão nervoso, não entendi. O padre terminou e eu comecei espontaneamente o que havia decorado e ensaiado no dia anterior:

- Padre! Pequei contra Deus e contra os irmãos, estou arrependido e peço perdão. É minha primeira confissão e meus pecados são os seguintes:....

Empaquei. Estava nervoso não conseguia falar os pecados. Tremendo fui obrigado a pegar minha lista que estava no bolso da calça, mas ajoelhado demorou um pouco até eu conseguir encontrar e retirar o papelzinho.

E comecei a lê-los rapidamente, as freiras tinham autorizado na primeira confissão que pudéssemos ler, mas só na primeira confissão.

O padre interrompeu e falou:

- Não tenha pressa filho! Eu não vou fugir! Respire fundo... e pode recomeçar, mas devagar!

Respirei e fiz o que o padre falou e comecei a ler devagar um por um os meus pecados, não eram tantos assim também. Cheguei ao último pecado da minha lista, dei uma engasgada, ainda estava em dúvidas se falava ou não.

O padre estava esperando e já iria começar o próximo passo que é da aplicação da penitência, quando falei alto o meu pecado, aquele que me atormentava:

- roubei farofa do cuque padre!

Fiquei em silêncio, o padre também. Não sabia se o padre estava calculando a minha penitência ou se estava tomando fôlego para não explodir em gargalhada.

Alguns instantes depois ele me aplicou a pena, a minha penitência:

- Filho reze três pai nosso, três ave marias, e um creio em deus!

Ele não falou nada sobre o roubo da farofa de cuque. Imediatamente e antes que o padre mudasse de ideia, comecei a rezar o ato de contrição. O padre fez outra oração e terminou a confissão:

- Vai em paz e que o Senhor te acompanhe Filho!

E escutei mais uma vez o “toc toc” no confessionário. Este “toc toc” me libertou do tormento do último pecado, eu estava tranquilo e aliviado, já havia feito minha confissão, agradeci ao padre e saí.

Agora de cabeça erguida e com um sorriso no rosto, igual ao do padre quando ele chegou. Aliviado fui cumprir minha penitência, ajoelhado no banco da igreja rezei os pai nosso, as ave marias e o creio em Deus. E por conta própria rezei mais do que o padre sentenciou.

O restante da cerimônia da primeira comunhão correu tranquilamente. Após voltei para casa com meus pais e meus irmãos para o almoço especial: churrasco, naquela época não era tão rotineiro como hoje e de sobremesa teve cuque de banana e farofa, quer dizer, só tinha um pouco de farofa, pois eu tinha “roubado” uma boa e grande porção da farofa, mesmo assim o cuque estava uma delícia.