O surdo voluntário
"O senhor tem glaucoma... com o tempo ele pode resultar em perda da visão, mas se começarmos a tratar desde já o senhor só perderá a visão periférica"
A frase do doutor se repetia na sua mente. Cego? Como assim? Não tem como ele moderar a leitura, afinal, professor tem que escrever plano de aula, corrigir trabalhos e provas... Horista, ele tinha que trabalhar o máximo que podia para sustentar a si e sua noiva.
Um professor cego... Até que seria possível, mas não é isso que o preocupa. O que mais preza é a independência e com a perda da visão ele dependerá e muito da boa vontade dos outros. Aliás, cético sobre a boa vontade das pessoas, não espera um futuro de superação.
O que será da minha vida, meu Deus? Se perguntava, olhando para o fundo da pia. Ao chegar da consulta, passou longos minutos mirando seus olhos. Viu eles se transformarem de olhos vermelhos secos para olhos vermelhos marejados.
Mas tinha decidido: não mudará a sua vida por causa disso. Vai usar colírio, fazer tratamento, mas sabendo que aos quarenta anos poderá se tornar um deficiente visual. Não importa, ele tem de continuar com sua vida e esperar que nada aconteça. E se acontecer? Como ficará a mulher, a casa, seu trabalho? Ele não quer saber, não quer saber agora. Nem agora, nem nunca. Não quer mais ouvir falar de glaucoma, de cegueira, de visão periférica, de cegueira. Não quer mais ouvir falar de nada.
O pior cego é aquele que não quer ouvir.