Um dia em 1958

(Autobiográfico)

Ele nunca acordava de mau humor. Por mais que aquelas paredes brancas de cal com largo rodapé de piche e aquele teto tão alto de telhas obscurecidas por umidade e fuligem lhe dessem a impressão de estar no fundo de um caixa alta. A única coisa que quebrava aquela monotonia branca era a porta, simplória de duas folhas verticais verdes e entreabertas que já deixava passar o forte cheiro de café “torrado em casa”. Era o sinal matinal que lhe trazia as torturantes lembranças das obrigações escolares. Só detestava menos aquele pão com manteiga. Comer ovos fritos era raro. Tivera poucas oportunidades. Nunca se atreveu a pedir tal iguaria. Sabia que não podia.

O pente enganchava nos cabelos que sempre pediam brilhantina. Há! Que coisa ruim! O som do nome já lhe enojava. O aspecto melado e gorduroso daquela substância pegajosa de odores fortes dentro de pequenos potes de vidro. Sentia desprezo por esses vasilhames até quando os via no chão da rua ou no depósito de lixo. Ainda bem que está vazio, pensava.

Estava era ansioso pela noite. Lembrara dela ao dobrar a esquina da Rua que morava com o beco que dava para a Rua de trás. Aqueles muros de tijolos de cerâmica compactos que limitavam as laterais dos quintais, mas já gastos pelas intempéries, manchados por fina camada de lodo lhes dava um conforto familiar, porém eram pouco afeitos a contatos por serem úmidos e escorregadios. Sem contar que tinham bichinhos como lesmas, caracóis, pequenas baratas, centopéias e besouros esquisitos fervilhando por entre as frestas dos rejuntes gastos. À frente, no lado poente da Rua de trás em frente à outra extremidade do beco, estava a casa delas, Mônica e Vera. Seria lá que haveria o ensaio. Como ele gostava da palavra ensaio! Seu único significado era o do evento que aconteceria logo mais à noite. Havia ensaio às terças e quintas-feiras. E hoje era terça-feira.

Tropeçou na calçada da esquina.

- Entre menino distraído! Bradou Dona Lenice.

Ele não havia se acostumado a chamá-la de “Dona”. Seu irmão não chamava. Ninguém chamava. Depois, quando ainda não era sua professora particular, ela era muito boazinha. Brincava com ele. Era carinhosa... E era só Le-ni-ce. Ele quase não a reconhecia agora. Ela havia se transformado numa... numa... coooiiisa ruiiiiiim!

Não gostava de lápis. Eles tinham um cheiro de madeira fétida. Se não fazia força não saía linha. Se, fazia...

- Quebrou de novo menino?

- Foi.

- É porque você não pega direito!

Qualquer livro era mais bonito do que a carta de abc. Até os *folhetos da feira.

Nesses momentos, preferia lembrar das coisas de que gostava. Uma delas era comer aratús. Vermelhos, pintados de branco. Todo domingo ia para feira com a mãe. Aqueles cheiros de charque, abacaxi, panos, alpercatas de couro, fígado alemão, temperos, perfumes e gente, muita gente, com muitos jeitos diferentes.

- Presta atenção menino tonto! Mãe, não sei o que fazer com ele. Eu vou dizer a Dona Amália que ele não quer saber de nada não.

- Bote de castigo, Lenice!

- Você vai, ajoelhar aí. Só vai sair quando souber a lição!

Desespero. Solidão. Desprezo. Desamparo. Loucura!

Aaaaaaaaaaaaaaaaa! Aaaaaaaaaaaaaaaaaaa!

- Eu vou buscar sua mãe viu!

Medo. Pouco tempo para se recompor. O nariz escorrendo. Vontade de mijar. Vontade de vomitar.

- Senta aqui menino! Por isso que com sete anos ainda não sabe nada!

- Mãe, não sei se vou agüentar não.

- “Mas o que foi que eu fiz pra ela não agüentar? Foi ela que me botou de castigo, que me tratou mal”. Pensava.

Feijão com charque dentro. Arroz. Carne verde. Ai meu Deus!

- Quero não mamãe!

- Biu, dá comida pra ele!

- Já to atrasado mamãe e esse menino ta muito grande pra não comer sozinho.

Foi correndo pra casa de Dona Maria mãe de Luis que moravam quase em frente. Luis era um rapaz talentoso. Estudava desenho por correspondência e tocava sax baixo. Ele gostava muito dele. Conversavam boa parte da tarde quando Luis se dispunha a responder perguntas. Naquela tarde, se pôs ao lado de sua prancheta de desenho olhando os traços de formação dos rostos, esboços de movimentos das mãos e se surpreendendo com o apagar de obras consideradas perfeitas para novas tentativas ainda melhores. Bonito mesmo era o avivamento das linhas fazendo acender figuras que ele não adivinhava. Ficava fascinado. Luis parecia não perceber a variação das emoções de seu parceiro. Rabiscava, apagava, definia, trocava de folha, de pena, concentrava o olhar no papel, inclinava a cabeça, enquanto era acompanhado sem perguntas. Espectador não fala, não mexe, não coça, nem pisca!

Ele parecia se cansar de desenho porque o largava pelo sax. Apesar da bela e suave sonoridade as interrupções nos solos tornavam difícil identificar as músicas. Melhor ir embora.

Só não queria encontrar Isaac. Morria de medo dele.

Não houve protestos no banho. Até a brilhantina parecia menos pegajosa. Calça curta de Tropical azul-marinho, camisa de popelina amarelo-claro e chinelos de couro. A ansiedade aumentava. Ainda era cedo, mas...

- Pra onde o “senhor” vai?

O tom de ameaça o deixava paralisado. Sua mãe não era o que se podia chamar de diplomática. Tratava-se de uma mulher austera. Herdara da sua mãe esse semblante grave com suas opiniões estampadas no rosto. Nunca havia dúvidas sobre o que queria. O que poderia salvá-lo da decisão fatal era o amor que ele sabia, com ainda mais certeza, ser maior que as obstinações cuidadosas, mas restritivas da mãe. Uma carinha triste, uma expressão suplicante, emoldurando um lamento humilde poderia convencê-la, demovê-la dessa proibição.

- Mamãe, vai ter o ensaio na casa de Vera. Eu queria ir.

O beco estava escuro. Não me importava se tinha alguém namorando. Durante sua travessia sempre passava mais alguém em sentido contrário. Naquele horário, às vezes era outro músico vizinho de quem gostava, que tocava trombone na orquestra e trabalhava como torneiro na usina, às vezes era a filha solteira de outro casal vizinho e que trabalhava no (*)Armazém. Não importava quem passasse. Austin, o cachorro deles sempre latia.

A fachada da casa de Vera estava iluminada. Haviam colocado lâmpadas como nos parques. A diferença é que eram brancas e as do parque eram coloridas. Estava muito claro na calçada. Os músicos ainda não haviam chegado. Ele foi se aproximando de uma das duas janelas da sala aumentando o seu campo de visão na mesma medida. Primeiro, apareceram os cabelos louros e lisos de Mônica, depois as outras meninas sentadas no chão. A sala estava sem os móveis. Aqueles sofás vermelhos tinham sido removidos. Só havia tamboretes pretos para os músicos sentarem.

Um corre-corre, um grita-grita... Olha pra um lado... Olha pro outro... Eles estavam chegando.

“- Só três?”.

É. Eram somente os três. Certamente, no dia seriam mais!

As meninas já estavam se perfilando. Puxa a menor pra traz, empurra o pastor pro fim. Chama a borboleta. A última palavra era a de Vera, a mestra. Ela tinha treze anos. Seus cabelos não eram nem lisos nem curtos e sem graça como os de Mônica. Seus olhos eram verdes, mas ela não era branquela como a irmã. Era linda!

Nem percebera as montagens da bateria e das estantes de partituras no lado direito da sala. Os inevitáveis e chatos floreios e arpejos de afinação já inundavam a noite. Tonhinho do sax também chegara. Agora eram quatro! Além dele, Mário Barbosa com a clarineta, Seu Viana com o violão dinâmico e Mauro na bateria.

As meninas já estavam prontas. 1, 2, 3... E o harmonioso arranjo de já lhe arrepiava os pelos dos braços. Elas entraram cantando ao final da introdução no exato compasso:

- Boa noite meus senhores todos;

- Boa noite senhoras também;

- Somos pastoras, pastorinhas belas;

- Que alegremente vamos à Belém;

- Somos pastoras, pastorinhas belas;

- Que alegremente vamos à Belém;

- Sou a mestra do cordão encarnado...

As evoluções fluíam tão belas quanto as músicas. A esta altura, a calçada já estava lotada. Ele já se sentia meio espremido pela súbita platéia.

- Meu São José, dá-me licença;

- Para o pastoril dançar;

- Viemos, para adorar;

- Jesus nasceu para nos salvar;

- É do meu gosto é da minha opinião;

- De amar ao azul com prazer no coração;

- Hei de amar a o azul;

- Com prazer no coração.

O tempo passava sem que ele notasse. Sucediam-se as canções. Assaltava-o uma nova emoção a cada bela introdução. Deliciava-se nos arranjos que preenchiam os vazios das letras enquanto olhava as evoluções das meninas e o charme da mestra. As cordas da manola davam o ritmo melódico enquanto as educadas baquetas de vassoura pontuavam o ritmo básico de percutir. As expressões dos músicos compenetradas e integradas ao esforço da execução sempre o impressionaram. Era a vitória da disciplina e do prazer raramente vistas juntas.

Ao entrar no beco, nenhum barulho de outras crianças desmanchava aquele som que permanecia no seu íntimo. Muitas tinham vindo da sua rua. Mas, somente as notas o acompanhavam.

O claro do quarto vizinho distribuía difusamente uma luz fraca no seu quarto e as canções, aos poucos, iam se amofinando em sua mente.

*Literatura de cordel.

NOTA DE RODAPÉ

"Pastoris ou lapinhas são sinônimos, para mestre Câmara Cascudo. São bailados, cantos, recitativos e diálogos em homenagem ao nascimento de Jesus. Antigamente, só se realizavam à frente dos presépios. Hoje, estão nos tablados, em qualquer parte.

Dizem os entendidos que esses bailados foram introduzidos no Brasil no século XVI, pelos padres. Depois, profanizaram-se.

As pastoras, vestidas de azul e encarnado, formam os dois cordões tradicionais. Aliás, por causa delas já houve muita briga nesta cidade de Natal...

Personagens: A Mestra, Contra-Mestra e as Pastoras. Às vezes, aparecem figuras cômicas, como o Anjo ou o Diabo.

Os instrumentos variam, mas é sempre acompanhado o bailado por um conjunto de pau-e-corda. O valor folclórico das melodias é fraco - dizem os técnicos. Em geral, são músicas semicultas, vulgarizadas".