Do silêncio ou do que as pessoas não dizem

Ele balbuciou uma verdade qualquer.

Ela ouviu, mas concentrava-se em comer. Uma janta preparada com atenção, sem previsão de tragédias, mesmo assim percebia nas suas feições o desvario.

Sentiu a garganta rasgar, dificuldade imensa em deglutir as palavras proferidas, como se elas estivessem lutando contra o fluxo natural da digestão. Em vez de unhas, garras de uma jaguatirica. Engoliu uma, duas, três vezes e se deslizava em direção ao esôfago logo subia novamente a boca. Esforçando-se para se distrair da dor, não conseguiu controlar o ininterrupto trabalho da mente e lembrou-se de quando um gato pulou em suas costas rasgando do pescoço à cintura sua pele. Detestava os felinos porque eles a detestaram primeiro.

De repente, distinguiu a mesa se abrindo, no espaço que se delineou, em poucos segundos, um sorvedouro se formou. Desejou cuspir aquela coisa para dentro do sumidouro, mas ela também se recusava a sair. Agarrou-se aos lábios e se movimentando boca adentro dilacerou sua língua e ali se instalou. Rosnava.

O sorvedouro aumentava, agora era como um turbilhão que tomava para si tudo que existia no entorno e cuspia de volta quando apetecia. Pensou na louça de porcelana, presente de casamento da sua avó materna, tudo perdido em cacos pela sala. Passou a mão pelo rosto, tapou os olhos num gesto de desespero esperando que quando descobertos tudo se revelasse vulgar como antes.

Outra coisa que detestava: o comum. Não compreendia o mundo na rotina de dias que sucedem noites. Como sempre, culpa da mãe. Mãe que levantava todo dia a mesma hora realizava as mesmas tarefas, dizia as mesmas frases no mesmo tom de voz. Quando da véspera de sair de casa, perguntou o porquê dessa vida de repetições, a mãe se limitou a balbuciar “não gosto de surpresas”. Assim, cismou que cada momento de sua vida seria uma revolução. Porém, a última frase que ouviu da mãe ecoava em sua cabeça, sentia cada aresta das letras, em caixa alta, furando a massa cinzenta.

Distraída, lembrou-se do dia que soube que o cérebro não doía, por isso daquelas cirurgias em que o médico afundava a mão em circunvolunções enquanto o paciente sorria orgulhoso e plantava bananeira.

Como doía tanto então nela?

Tentou comer mais um pedaço do frango, mas só sentia o maldito felino esfolando o trato digestório e o gosto quente de sangue que saia dos vasos e era mandado em grandes quantidades em direção ao estômago. Leu numa revista que em alguma religião era pecado ingerir sangue de outros animais, qual era a gravidade de digerir o próprio?

Sentia calafrios correndo pelos membros, experimentava marteladas cada vez mais fortes na cabeça, mas se manteve dura, uma pedra de mármore.

Sempre havia pensado no desespero como algo estapafúrdio, barulhento, um exibicionismo qualquer. Mas ele, furtivo, a tirou dos trilhos com tanta candura que mesmo notando ela não se importou.

Viu-o sair porta a fora e notou que ele deixara a comida intocada no prato.

Halina
Enviado por Halina em 03/06/2011
Reeditado em 08/08/2012
Código do texto: T3012845
Classificação de conteúdo: seguro