Flocos

- Vô, agora que você está aposentando, que já aproveitou a vida, já ganhou prêmios e tudo mais, gostaria de fazer-lhe uma pergunta.

- Pode falar meu filho. – Respondeu carinhosamente seu Francisco Matoso da Silva, a quem o Brasil conheceu como o contista e romancista, Franklin Mattos.

-Jonas! Deixe de ser inconveniente! Importunando o vovô com perguntas impertinentes.

- Desculpe minha filha, mas a inconveniente no caso está sendo você. Talvez pela distancia que se criou voluntariamente entre nós, independente de nossas vontades e de nossas escolhas, você nunca tenha se interessado de fato pelo seu Francisco, quando ele passou a ser Franklin. E além do mais o garoto ainda nem fez a pergunta e se a pergunta for realmente impertinente ou inconveniente o máximo que vai acontecer vai ser uma resposta do tipo. Infelizmente isso não posso lhe responder, meu filho. – Desviou a atenção para o neto dando-lhe uma piscada e indicando que mais uma vez e como sempre se portara, estava em sua defesa.

Jonas estava com seus 12 anos e desde que se conhece por gente sempre pode acompanhar os movimentos na casa de seu avô. Repórteres, cinegrafistas, agentes literários, editores, jantares e almoços familiares interrompidos, viagens no meio das férias. A carreira de seu avô teria se alavancado justamente no advento de seu nascimento, sendo ele um marco para o avô, uma recompensa pelo trabalho voltado para a educação e cultura e pelo filho homem que não havia tido oportunidade de ter.

- Vamos lá meu filho, pergunte. Não se acanhe por sua mãe. – Falou ele de uma forma sarcástica, observando ainda que de soslaio que Maura, sua filha, se afastara em direção a piscina deixando-os a sós na sala.

- Sabe vovô, as vezes não entendo a mamãe.

- Talvez seja este o motivo que me fez procurar outra vida. Nunca lhe contei isto, na verdade nunca contei a ninguém, mas quando sua avó faleceu, decidi que nunca mais me envolveria com outra mulher, pelo menos não na forma de um compromisso. As mulheres de uma forma geral não compreendem o jeito de pensar do homem e em contrapartida os homens compreendem ainda menos as mulheres.

- A vovó foi boa pessoa? Sinto não te-la conhecido.

- Sim, Jonas. A vovó foi uma grande pessoa e foi realmente uma pena você não a ter conhecido, mas enfim, são coisas que acontecem na vida da gente, sabe. É difícil de explicar. Sempre tive amigos e hoje me vejo desabafando com um garoto de 12 anos.

- Mas o que lhe impede em falar algo para mim? Não sempre foi você quem pregou que as crianças são adultos em desenvolvimento?

- Nunca deixaste de me surpreender meu neto. É verdade, eu sempre preguei isto e é a mais pura verdade. E guarde também o que te digo agora. Tu és um homem, sempre o fostes e sempre serás, desde a primeira lágrima que derramaste até a ultima que derramarão por ti, mesmo que já tenhas partido. Te admiro mais até do que tu possas imaginar.

O abraço selou a cumplicidade e um beijo carinhoso na testa de Jonas, deixou-os de olhos marejados. Sorrisos embaçados estampados em seus rostos.

- Vô.

- Diga meu neto.

- Eu ia lhe fazer uma pergunta.

- Mil perdões. Mais uma vez deixei o velho Chico ser possuído pelo Franklin Mattos e me perdi em devaneios.

- Na verdade não é só uma pergunta.

- Fale antes que eu me arrependa – sorriu ele ternamente.

- Você tem sonhos que ainda não realizou?

- Sim, muitos.

- Como por exemplo...

- Conversar com sua mãe assim como converso contigo, ve-lo um homem feito, digo formado, trabalhando, casado.

- E sonhos para você?

- Esses são sonhos para mim.

- Vô! Você me entendeu.

- Maldita hora em que fui acreditar que deveria educar as crianças como adultos.

- Porquê?

- De todas as entrevistas que eu dei na vida, sempre falei o que quis e nunca arrancaram de mim algo que eu não quisesse dizer. Talvez sua mãe esteja certa e você seja realmente inconveniente e impertinente.

- Talvez você possa redimir este erro me respondendo a pergunta e depois me pagando um sorvete.

- Só se for agora. De flocos não é.

- O senhor ainda não respondeu...

- Pensei que não tivesse tanta importância para você. Afinal de contas é um sorvete de flocos.

- O que há de tão ruim nos seus sonhos que eu não possa saber?

- Não há nada de ruim. Eles apenas são meus e ponto.

- O senhor não acha que é mais fácil resolver todas as coisas dessa maneira. Fugindo.

- Acho. – Parou para pensar e continuou. – Acho que você deveria ser um repórter. E você já reparou na semelhança entre um sorvete de flocos e um microfone?

Desta vez o menino não respondeu e ele reparou que nunca em sua vida ou talvez não mais nesta existência, ele poderia competir com a sagacidade de uma criança. Pelo menos não com a de seu único neto Jonas Farias Jr.

- Filho. Tenho desejos mundanos, nada que se possa orgulhar. Coisas que me fazem pensar o quão velho estou me tornando.

Percebeu que sua nova evasiva, não modificara em nada o impenetrável olhar de Jonas.

- Esta bem, eu confesso. Que mais um velho escritor pode querer. Queria ter um filho que seguisse os meus passos, pois sinto que minhas pernas já estão ficando bambas. Queria ser imortal, queria ter uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e sinto que este sonho não poderei realizar.

Um sorvete de flocos nunca fora tão saboroso e aquela tarde de domingo, como todas as outras passou.

Jonas cresceu, foi estudar no exterior, se formou em Letras e Jornalismo, conquistou um nome e prestígio e com a morte de seu avô, largou parte do que havia conseguido, como seu rentável emprego de correspondente internacional em uma grande emissora de TV e voltou para o Brasil. Passou 25 anos em um projeto ambicioso que mudou a sua vida e que chegara a seu ponto culminante em um extenso discurso, que finalizou-se desta maneira...

Dizia ele - ...E se eu estou aqui diante de vocês, não é por que estudei nas melhores escolas, fui um correspondente internacional ou porque sou melhor pessoa ou escritor do que qualquer um outro que ouse juntar palavras sobre um pedaço de papel. Estou aqui porque perdi. E somente porque perdi, me pus a procurar e graças a minha perseverança e aquilo que por bem aprendi a chamar de Deus encontrei. E é engraçado por que perdi para o tempo e foi ele mesmo que me trouxe de volta. O que eu perdi foi a pessoa que mais amei na minha vida e por muitas vezes não me dei conta disso. A pessoa que me ajudou a engatinhar na vida e nas letras e que hoje faço minhas as suas palavras.

“E guarde também o que te digo agora. Tu és um homem, sempre o fostes e sempre serás, desde a primeira lágrima que derramaste até a ultima que derramarão por ti, mesmo que já tenhas partido. Te admiro mais até do que tu possas imaginar.”

- E estas lágrimas que os nobres senhores e senhoras estão vendo escorrer pelo meu rosto são por ele e por todo o amor que uma pessoa pode sentir por outra.

- É única e exclusivamente por esta razão que ocupo este lugar de destaque, esta cadeira que serviu de acento a outras tantas nobres figuras da literatura brasileira. E por este motivo também que na noite de hoje realizo um sonho, que passou a ser meu e que se tornou quase que uma obsessão nos últimos 25 anos de minha vida. Me tornar um imortal. E é por isso também que passei a assinar os meus textos não mais como Jonas Farias Júnior e sim como Franklin Mattos Netto.

- É por isso que agora peço a licença a todos para dizer:

- Seu Francisco, aquela tarde de domingo nunca foi esquecida, eu te amo e obrigado.

Paulo Garcez 26/04/03.