A outra face

Vinha eu andando pela rua, era uma noite de sexta-feira. Caminhava tranquilamente pela avenida da praia, quando tive uma visão. Não estou falando nada de sobrenatural, não. Estou falando de uma mulher. E que mulher. Parecia uma deusa, vinda das profundezas das mitologias perdidas, das mitologias urbanas, de Benjor e Vinícius. A coisa mais linda que já vi passar, toda de branco por entre automóveis, ruas e avenidas.

Ao longe reparava em seus longos cabelos castanhos, cacheados, parecia que o tempo diminuía o correr quando ela passava e o senhor do tempo dava lugar a ela. A mulher.

E o mosaico português servia de passarela para a pureza e a brancura de suas vestes e de sua pele. Seus passos suaves faziam-na quase que flutuar pelas pedras coloridas e seu longo vestido aumentava ainda mais a impressão.

Mas o melhor disso tudo, é que ela vinha em minha direção.

Em uma situação como esta, visto-me de pudores e comporto-me como simples admirador, um vouyer ao longe, isolado, mas a energia desta mulher me atraiu para a ação. Respirei fundo e a alguns metros de distância, disparei o olhar e pude perceber que ela havia reparado em mim. Quase que instantânea ou instintivamente, seu ritmo de passadas diminuira, até quase parar, enquanto o meu ritmo cardíaco aumentava até meu peito quase estourar.

Pude reparar também que um leve sorriso se formara no canto de seus lábios e percebi nesse instante que seria arrebatado por aquele furacão de mulher que, agora a passos largos, encaminhava-se em minha direção e seus olhos penetrantes perfuravam minha alma.

Três metros nos separavam. É estranho como o tempo se comporta em certos momentos. Ela parecia tão rápida e tão lenta ao mesmo tempo. O sorriso largo, refletindo no meu, parei, olhei novamente em seus olhos e o profundo azul de suas íris pareciam acinzentar-se como se uma tempestade se formasse nos céus. Seus olhos cresceram, brilhavam e agora dois metros, talvez nem isso, era a distância entre nós.

Neste momento ela parecia mais rápida, não consegui, talvez pela proximidade, reparar em todos os seus movimentos. Acho que ajeitou a bolsa com a esquerda e estendeu a direita na altura do ombro. Traduzi o gesto como um abraço, mas o que estava por vir era muito, muito mais que isso. Quando restavam 3 passos entre nós, lentamente fechei os olhos com uma leve piscada e um sorriso bobo nos lábios.

Mais um passo e já podia sentir seu frescor. Um aroma adocicado de flores do campo. E sua voz tão doce, como assim eu imaginava, pronunciou uma só palavra que precedeu o tapa que me marcou a alma.

- Canalha!

Uma explosão de sentimentos tomou todo o meu corpo. Além do ódio e da dor transmitidos pela violência de sua mão estampada em minha face, sem ao menos saber o porquê, recebi de peito aberto aquele tapa. Um senhor tapa, diga-se de passagem. A vergonha me impedia de abrir novamente os olhos e encarar as inúmeras pessoas que me circundavam. Dei alguns passos as cegas e por fim respirei fundo e olhei ao redor. Alguns comentavam a boca pequena e outros sequer haviam reparado, mas a mulher, a deusa, desapareceu no ar com a mesma leveza com que se aproximou e em minha face ficaram depositados, ador, a angústia e a doçura de seus dedos.

O acontecido atormentou meus dias e minhas noites e demorou para ser esquecido. Mas depois de algumas semanas, por fim desapareceu de minha mente sem que pudesse ser entendido.Até hoje. Quarta-feira, no foyer do teatro municipal, na expectativa para o início da orquestra, bebericava tranquilamente um drink na companhia de amigos e minha expressão se modificou quando lhe vi.

De repente, tudo ficou claro. Tive nesta noite uma nova visão, só que desta vez era estranho e percebi que a estranheza estava estampada também em seu rosto. Não era uma bela mulher, mas desta vez um homem. A seriedade estampada em seu rosto não conseguia esconder os traços de sua testa, seu olhar, seus olhos, seu cavanhaque e seus poucos cabelos negros, raspados à máquina. Até suas vestes eram familiares e ele se aproximava de mim.

Não que eu o tenha achado bonito, não. Até poderia achar, qual o problema? Quer saber, na verdade qual o maoir problema? Ele era eu. Quer dizer, não eu, mas como se fosse e se aproximava. Percebi que além das semelhanças, existem as diferenças. Mas só mesmo eu ou ele para saber, apesar da confusão que cada um é si próprio e o outro é um fruto do acaso. A outra face.

Quando estávamos a três passos, seus olhos se arregalaram e um sorriso se estampou em meu rosto, ele piscou e minha mão direita foi parar, da altura do ombro como armada para um abraço, em sua face.

Próximo do que Cristo pregou, ao invés de dar a outra face, dei na outra face. E sumi.

Esta certo que perdi a apresentação da orquestra, mas tive outras oportunidades. Hoje fico pensando em toda esta loucura, pois ao fim não descobri porque o bati, mas espero que ele tenha descoberto porque apanhou.