Ovídio
Agosto
Ovídio
O cãozinho da casa tinha se tornado uma espécie de parceiro fiel. Aonde iria sua dona ele impreterivelmente teria o seu lugar assegurado. Era um desses cachorrinhos pequenos, com pelos até n’ alma, que vai todas as semanas ao veterinário para ser cuidado. Afinal, sua dona morava num apartamento, bem amplo e era uma pessoa extremamente cuidadosa com a saúde do bicho. Todas as vacinas sempre em dia. Tudo o que fosse possível e que estava ao alcance dela, ela faria por aquele pequeno ser.
Bem verdade, que muito exagerava , porque afinal, tratava-o como um filho. Um filho que ela tivera engravidado e abortado de um marido, há muitos anos quando ainda era uma mulher jovem. Hoje talvez fosse um rapaz ou uma moça, com uns trinta anos.
Toda a afeição de mulher-mãe fora direcionada ao animal Com os animais ela não sentia-se envergonhada e mostrar os seus sentimentos.. E ele como era de uma dessas raças bastante inteligentes, sabia como ninguém chantageá-la e fazer uso de toda tirania que talvez uma criança não fosse tão capaz. Mentira, não subestimemos às crianças, elas são tão capazes o quanto ele era. Ela não ligava para isso, no fundo sentia-se requisitada como mãe e isso era muito bom para a sua vida.
Aposentara-se muito cedo, começara também cedo a trabalhar. Possuía alguns bens, afinal fora alta funcionária do Banco Central durante a vida toda e sempre tivera bons cargos. Assim, o ganha-pão não era problema para ela, foi lucro. Ganhou muito dinheiro e gastou com o que bem entendeu, sem prestar conta a ninguém . Era uma pessoa bem livre. E amava essa liberdade.
Durante muito tempo ficava a andar de um lado a outro em busca de um homem para dividir os sonhos, a vida, mas desistira muito cedo. Quando não encontrava rapazes bem jovens querendo usufruir das regalias da “coroa” cheia da grana, encontrava homens de sua idade com traumas de relacionamentos passados que eram tão pesados, tão tristes e doentes que o ar ficava irrespirável perto deles. Como também não era muito sexual, resolvera esta parte da solidão com muita praticidade: simplesmente enterrou a sua libido, com alguns remedinhos antidepressivos. Resolvera ser mãe e não mulher. E de um cãozinho.
Antes de ter o bichinho de estimação, conheceu quase o mundo todo em excursões com os colegas do banco. O mundo para ela não era mais mistério e chegara a conclusão que a humanidade é sempre a mesma, não importando a nacionalidade, como os shoppings centers, que mudam pouca coisa de um país para o outro, a não ser o luxo a mais ou a menos. Fazia esta comparação com a humanidade. Simples, clara, leve e prática. De todos os países por onde passou trouxera bugigangas para recordar cada momento de alegria junto aos seus amigos de banco. O apartamento era decorado com tais souvenires de viagem.
Infelizmente, soubera que dois colegas que sempre se faziam presentes nas viagens tiveram partido , um já estaria muito doente e o outro repentinamente, se foi. As fotos com eles ficavam sempre à mostra no móvel de sua sala. Era uma mulher bastante amorosa e todos sabiam que poderiam contar com ela para tudo. Normalmente, era requisitada na hora em que as pessoas estariam desnorteadas ou endividadas.
Ela era uma pessoa feliz ao lado do seu poodle. Tinha uma vida sossegada financeiramente, estava envelhecendo de maneira digna com boa aposentadoria e saúde. Realmente não tinha do que reclamar. A solidão não existia para ela, pois o pequeno poodle branco, não a deixara sozinha um só minuto durante a sua existência. Se ela adoecia, ele se prostrava ao lado da cama dela e acompanhava-na até ao banheiro, se fosse preciso. Se ela passasse cinco minutos fora de casa, quando abria a porta parecia que ele não a via há séculos, tamanha alegria do cachorrinho. Ela todos os dias fazia a mesma coisa por ele, passeava, dava-lhe comida, amor. Chegara até pensar como são limitados os irracionais. Sempre agradeciam da mesma forma, quando não raro esperavam por essas atitudes.
Muitos a criticaram durante muito tempo por esse amor . Que exagerara nos cuidados com o animal e inclusive, muitas vezes falaram para que ela fosse cuidar de uma criança, ao invés de um cão. Normalmente, esse discurso no início a tirava do sério, o que era raro, mas ela queria um cachorro, o menino ela não quis e não pensava mais nisso, era um direito dela, além disso, nem tinha mais idade para isso, estava mais para ser avó. E conseguira sentir-se mãe com o pequeno cãozinho. Todo o amor materno que ela pensava existir e exercer ela conseguira plenamente com o pequeno poodle. E danem-se!
A vizinha do prédio em que morava com o marido e filhos, uma mulher branca , com alguns pequenos sinais vermelhos pendurados no pescoço e sempre com os cabelos em desalinho vivia a incomodá-la com perguntas indiscretas quando a encontrava no hall do prédio: Por que não casara? Ganha quanto? Quanto é a consulta veterinária desse cachorro? Não gosta de homem? Eram tantas e tantas perguntas inconvenientes que ela pacientemente só respondia com um sorriso.
Perplexa não acreditava que existiria gente assim, e todas às vezes tinha uma vontade enorme de rir, quando a dona aparecia como uma assombração, ficava já a esperar os próximos questionamentos. Normalmente, insuperáveis. Típicos de quem já tivera esgotado tudo o que havia para fazer na vida e quando a vida do outro passa a ser o bem mais interessante.
O seu cãozinho simplesmente tinha uma ojeriza a esta mulher, do nada, antipatia canina, acuava-a e latia tanto quando a via, que muitas vezes sua dona impaciente, dizia à vizinha que tinha que entrar, devido à falta de educação do seu cachorro . Mas quando batia a porta de casa, agradecia carinhosamente ao seu pequeno Ovídio, por ter se livrado daquela mulher tão indigesta. Esse era o nome dele. Homenagem a um dos grandes poetas latinos que ela adorava.
Um dia, como todos os outros, ela o levava para passear no meio da rua, para que ali fizesse suas porcarias caninas, mas ela como mulher bem educada que era, não deixava um rastro do “poeta” nas calçadas da redondeza, sempre andava com uns saquinhos para limpar as calçadas que Ovídio fizera de banheiro.
Num desses dias, enquanto Ovídio urinara com uma calma budista, passou uma cadelinha, sem dono, sem coleira, no cio, em disparada no meio da rua, com mais uns três cachorros a persegui-la. O pequeno Ovídio não quis saber de mais nada, desvencilhou-se da coleira de sua dona e correu também em disparada na direção à cadelinha.
Sua dona, desesperada, com medo que ele fosse atropelado, corria atrás, mas bem atrapalhada com medo do trânsito maluco da cidade. Eles subiam e desciam as ladeiras do bairro de Botafogo numa rapidez impressionante. E ela atrás, clamando para que ele a ouvisse. Nada fizera efeito. O odor do cio da pequena cadela o interessara muito mais que a voz doce e já cansada de sua dona. O instinto tem a voz mais firme.
Enquanto corria, ela até pensava em levar a cadelinha para casa também. Não teria o menor problema mais um cachorro por lá, o apartamento era grande e ela não tinha o menor preconceito com cãezinhos vira-latas. Além disso, Ovídio era tão só.
Porém, no momento em que pensara nessa possibilidade perdera de vista o casal apaixonado. Não via o rastro nem de um, nem de outro. O pânico fora tomando conta da senhora. Num momento sentara na calçada e pôs-se a chorar, logo foi acudida por alguém que passava e queria ajudá-la, mas a pessoa depois que se deu conta do acontecido, fez pouco caso e continuou a sua caminhada, desejando-lhe boa sorte.
Ela ainda andara por todo o bairro. Fora até em casa ,pegara a mais linda foto dele e na gráfica vizinha fizera diversos cartazes , mas não obtivera resposta alguma, apenas alguns trotes que não deram pista alguma, pessoas que tripudiavam ainda mais dos seus sentimentos e aconselhava-na a procurar algo para fazer.
Assim, foram passando os dias, as semanas, os meses e nada de notícias do pequeno Ovídio. Nesses meses, com a ausência do pequeno poeta em casa, ela teria descoberto o que o significava em sua vida a palavra solidão, que até então desconhecera.
E percebera que não era ele quem fazia sempre as mesmas coisas todos os dias e sim, ela. Ficara com as sua tigelas na mão esperando o momento de por a água, a ração, e dar-lhe carinho. Esse momentos faltaram, não mais existiam em sua rotina. Ela quem era um cãozinho habituado aos horários dele.