A Casa
A Casa
-Nós precisamos sair desta casa, é muito grande, dá trabalho, não tem segurança, os filhos casaram e mudaram, só nós dois aqui, não dá!
Ela sabia de tudo isso, mas se apegava a tudo, como deixar para trás tanta coisa, a casa onde as crianças nasceram e cresceram, as plantas que ela mesma escolhera e plantara, o quintal ensolarado, o ateliê onde passava horas esquecidas pintando ou escrevendo, as lembranças de um passado em que era jovem, feliz e nem sabia.
O coração ficava apertado à simples menção da palavra “mudança”.
Quanta coisa guardada, fotos que não acabavam mais, muitas de gentes que não conhecera, herança da sogra que o marido ficara de olhar e organizar e nunca encontrava tempo, muito material de trabalhos, aquele modelo que ela iria pintar um dia, as lãs que ela usaria quando aprendesse tricô, as receitas guardadas com carinho, até as da sogra e da mãe que levavam uma dúzia de ovos (certamente ela jamais as experimentaria), enfim, tanta coisa a que ela se apegava, embora soubesse que eram, em sua maioria, inúteis, trastes de vidas que se foram.
-Estamos sozinhos neste quarteirão, os vizinhos, nossos amigos, se foram, expulsos pelo barulho, pela violência, pela poluição.Vamos procurar um lugar menor, mais tranquilo, onde possamos viver em paz o resto de nossas vidas.
Porém, ela sentia-se presa, não gostava de mudanças. Em vão recebia e--mails que a exortavam a mudar, a jogar fora as velharias, para achar lugar para o novo, em vão o genro lhe dizia que lá estava muito perigoso, um casal já não tão jovem, sozinho, numa casa isolada, em bairro bastante visado pelos ladrões de carros e assaltantes ... precisava decidir-se urgentemente.
Ela se achava já meio velha e cansada para mudar. Ia dar um trabalho ... uma canseira ... Teria que olhar tudo, fuçar nas velhas fotos, nos guardados, resolver que destino dar a cada coisa, levar para onde fossem só o essencial ... e para onde iriam? Outra dúvida “cruel.”
Continuar em Sampa não iria mudar muito, continuariam o barulho, a poluição, a solidão, a violência, o medo de sair de casa, principalmente à noite.
Cada vez achava mais difícil tomar uma decisão.
E o marido não dormia mais à noite, por causa do barulho dos barzinhos, das pessoas que, embriagadas ou drogadas, vinham pegar os carros que estacionavam bem em frente de seu quarto, brigavam, chegavam a agressões e uma vez, até sairam tiros. O vizinho da esquerda, dentista, fora roubado inúmeras vezes, desistira de ter casa e consultório juntos, e levara a família para um lugar mais seguro, se é que existe isso.
-Vamos mudar, vender este elefante branco e procurar um apartamento que é mais prático.
Apesar de insistência do marido, ela teimava em não arredar pé de seus domínios, queria continuar como estava, que se não era muito bom, pelo menos, estava acostumada.
Até que um dia...
Tinham ido ao médico e voltavam de carro, quando ouviram um grande barulho, como se fosse algo batendo no carro e quebrando.
De repente, surgiu um rapaz, fazendo sinal para que parassem. O carro estava com problemas. Pararam, e o moço pediu que abrisse o capô, começou a sair fumaça e ficaram com medo. Gentilmente, disse que era uma peça que estava defeituosa e o carro não poderia andar sem ela e ofereceu-se para trocá-la. Ingênuos, oh! quão tolos e ingênuos, deixaram o prestativo rapaz, tão bem apessoado, tão simpático, tirar a peça, levá-la para fazer orçamento em uma oficina próxima. Logo (depressa demais, pensaram depois) ele voltou e ajustaram o preço que seria pago em dinheiro. Foram até o banco, o moço sempre junto, muito falante, não dando tempo para pensarem, nem chamarem o seguro.
Pagaram, o moço trocou (!) a peça e prometeu mandar a nota fiscal. Deram-lhe o endereço com telefone e tudo! E até hoje estão esperando a nota fiscal chegar! Os telefones que o “anjo”, dizia chamar-se Angelo, fornecera, todos falsos.
Só se deram conta do golpe, quando telefonaram ao filho e este percebeu na hora! O marido levou o carro à oficina para verificar se nada havia de errado. O carro estava em perfeitas condições, nenhuma peça fora trocada, muita gente tinha já caído nesse golpe, segundo o mecânico. E a fumaça? parecia estar pegando fogo. Provavelmente, o sujeito tinha um saco de água escondido e jogara ao abrir o capô, provocando a fumaça.
Que decepção, que raiva de passar por trouxas, de confiar em estranho!
Foi difícil dormir aquela noite, sempre voltando as imagens da grande besteira que tinham feito. nem puderam recuperar o dinheiro, pois tinham pago em espécie.
Ela ficou chateada por confiar e ser tão vilmente enganada, como as pessoas são falsas, ele parecia um bom moço, bonzinho, gentil. Que raiva! Nem sabia se tinha raiva dele ou de sua ingenuidade!
Não contaram o caso aos amigos nem à filha e demoraram dias para conseguir esquecê-lo.
Ela começou a pensar que poderia ter sido pior, se ele estivesse armado e os agredisse.
Sentia-se mal, insegura, a casa não lhe parecia mais um refúgio, talvez fosse bom mudar mesmo, tentar uma outra vida, em outro lugar não tão violento, em uma cidade do interior, não tão grande nem caótica. Gostava de Sampa, entretanto já passara aí quarenta anos de sua vida, agora era tempo de mudar.
E lentamente, começaram os preparativos ...
Puseram a casa à venda ... felizmente, o mercado estava bom na ocasião e conseguiram um bom negócio.
Difícil foi escolher o local da futura residência.
Mais difícil ainda, para ela, foi começar a desmontar sua vida, a picar, jogar, tranferir, doar seus preciosos tesouros a que só ela dava valor. Quantas lágrimas vertidas às ocultas para não estragar a felicidade do marido. Quantos sentimentos abafados para que não gritassem sua tristeza ...
Mas, era preciso! mudar seria bom, sabia disso, mas também
sabia que sentiria falta das amigas, mesmo que não as visse constantemente, elas estavam ali, à distãncia de um telefonema ou de um ônibus ou do metrô ou de carro. Depois, embora não fosse muito distante, tudo ficaria mais difícil, porque os velhos se acomodam no seu canto, sentem preguiça, ou antes, medo de se locomover, perdem o costume de viajar, de sair...
Aos poucos, a casa foi desmontada, os caixotes feitos, as malas arrumadas, só deixando para a transportadora o que não tivera tempo de encaixotar.
Despediu-se de poucas pessoas, nem gostava de dizer adeus!
Despediu-se da casa, das bananeiras do quintal que lhe proporcionaram tantos doces e lembranças gostosas, das plantas, de todos os cômodos, do piano que não iria caber no apartamento... Já não chorava, pois não tinha mais lágrimas ...
Chegou o dia, uma correria, com homens mexendo em tudo, embalando os móveis, os livros (nossa, quantos livros! reclamavam), os utensílios de cozinha, etc, etc, a sua vida, o seu passado.
Ufa, foram embora ...
Casa vazia, parecia maior sem a mobília, suas vozes ressoavam nas paredes nuas...
-Vamos embora, meu bem, está na hora. Já coloquei no carro o que vai separado, está tudo pronto, não quero pegar estrada noite escura.
-Vamos, sim, estou pronta! ...
E com a garganta cerrada, sem uma lágrima, fechou a porta pela última vez, deu duas voltas na chave, verificou se estava bem trancada e deixaram a chave no dentista vizinho onde o comprador iria pegá-la.
Entrou no carro, colocou o cinto de segurança e ... foi embora sem olhar para trás...
A casa ficou lá longe, sozinha, silenciosa, guardando os ecos de um tempo que não volta mais ...