A Pesca do Tucunaré
Eram cinco horas da tarde e a chuva caía em torrentes. O trânsito estava travado há pelo menos uma hora e meia. Os buzinados eram ensurdecedores, mesmo com os vidros do carro fechados, ar condicionado ligado e o CD tocando em razoável volume. Ele só pensava no atraso para pegar o filho na escola. O garoto, pré-aborrecente, segundo a sua filha, dois anos mais velha, porém em constante irritação com irmão caçula, deveria estar com um bico de aborrecimento tão grande que daria para equilibrar uma latinha de cerveja.
Quando ele pensou nas últimas palavras, latinha de cerveja, não soube bem porque, lembrou das últimas férias passadas na beira de um rio lá no interior de Rondônia. Sorriu saudoso!
Era uma característica dele. Na hora do maior sufoco, no auge da irritação... Vinha o subconsciente, buscava uma doce lembrança, estendia numa tela e passava um filme na sua frente. Quando ele contava esse traço de sua personalidade para os amigos, os caras riam e, meio em brincadeira, meio sério, o chamavam de louco. Podia até ser... Porém, nas reuniões mais tensas, onde tudo se encaminhava para o confronto puro e simples, esta faceta o resgatava para o campo do bom senso.
E ali estava ele, no meio do ‘rush’, no auge da irritação e lembrando de uma pescaria no interior de Rondônia, mas especificamente, no Rio Guaporé, belo rio que banha o município de Costa Marques, fronteira com a Bolívia.
Lembrou que um dos diretores da empresa tinha declinado de um convite de um dos clientes sediados em Porto Velho, capital de Rondônia, para uma pescaria na Bacia do Rio Guaporé e, para não deixar o cliente chateado o tinha mandado em seu lugar, naturalmente, com todas as despesas pagas. O Diretor informou que era um prêmio por alguns incêndios apagados em algumas reuniões tensas. O Diretor lembrou ainda que sua serenidade tinha assegurado alguns bons negócios para a empresa.
Ele abaixou o vidro direito do carro e espichou o pescoço para fora a fim de tentar vislumbrar alguma coisa, inútil tentativa. Tentou falar com o motorista do veículo ao lado, mas o cara balançava a cabeça num ritmo alucinado, acompanhando provavelmente um rock pauleira no aparelho de CD. Desanimado, levantou o vidro da janela do seu carro e apertou a opção rádio do CD-automotivo. Um som de estática invadiu o interior do carro. Pacientemente apertou a seleção automática das estações de rádio.
A voz sonora do locutor preencheu todo o espaço do carro: GRAVE ACIDENTE EM UMA DAS PRINCIPAIS AVENIDAS DA CIDADE...
Depois de ouvir a péssima notícia, ele apertou a opção CD do aparelho, relaxou e relembrou a pescaria. Instintivamente ainda lembrou-se da ex-mulher e da bronca que certamente levaria por atrasar a entrega do menino. Fazer o quê, né?
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A viagem até Porto Velho foi agradável; vôo tranqüilo, aeromoças lindas e atenciosas... A capital de Rondônia o recebeu num caloroso abraço de 35 graus à sombra, em média.
O aeroporto envolto em canícula colava as roupas dos recém chegados na pele devido à alta umidade relativa do ar. Um funcionário da empresa do cliente, de lenço na mão enxugando a testa e o pescoço, o esperava no saguão para levá-lo ao hotel; na manhã seguinte, depois de um lauto “breakfast”, foi levado novamente ao aeroporto onde embarcou num pequeno avião junto com o cliente e outros convidados.
O vôo fez uma escala em Guajará Mirim, e no trajeto até o destino, ele e os outros passageiros foram presenteados por uma das paisagens mais deslumbrantes que a ‘jungle’ amazônida podia oferecer.
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O plano de vôo das aeronaves que fazem escala em Guajará Mirim com destino a Costa Marques determina um trajeto de sobrevôo por sobre o Rio Mamoré, integrante da Bacia Hidrográfica do Mamoré; e, por arte divina, talvez um capricho de Deus (os ateus que me desculpem), as margens do Mamoré são orladas por inúmeros ipês com as matizes mais vivas que a espécie pode oferecer ao homem, reles espectador.
Ali, repito (ateus... escusas), a mão de Deus desenhou uma aquarela de amarelo, roxo, rosa, lilás e branco, as cores das Bacias do Mamoré e Guaporé. Os raios do sol refletindo no espelho d’água em forma de serpente imitavam um caleidoscópio de luzes multicoloridas; o privilegiado espectador no avião também podia vislumbrar por entre as altas copas das árvores os insinuantes reflexos dos lagos semi-escondidos no tapete esmeraldino da selva amazônica.
Os passageiros da pequena aeronave com os rostos grudados nas janelas soltavam exclamações diversas diante daquela apoteose da Mãe Natureza. Uns prendiam a respiração, outros, ao contrário, soltavam grandes golfadas de ar não acreditando no que viam. O anfitrião, antigo espectador daquele espetáculo, sorria modesto diante do regalo oferecido.
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A chegada em Costa Marques foi um pouco tumultuada em razão de uma rápida tempestade de verão, porém foi só um susto. Do aeroporto foram levados para a margem do rio de onde embarcaram em uma lancha que os levaram para os rios e lagos piscosos da região.
Era o mês de agosto, auge da temporada de pesca. O verão estava no seu apogeu. Vários barcos de todos os calados percorriam os diversos rios, furos, igarapés e lagos que formam a Bacia Hidrográfica do Guaporé, o pantanal rondoniano.
O sol no zênite resplandecia nas águas da planície guaporeana explodindo em cores mil. Os raios solares refletindo nas pequenas ondas formadas pela leve brisa que refrescava o calor incandescente no convés da embarcação transmutavam-se em pequenos prismas na superfície plácida daquela planície aquática.
O painel de cores dos lagos, paranás e tributários da Bacia do Guaporé eram emoldurados por árvores aquáticas de grandes e pequenos portes atapetadas por aguapés, canaranas e vitórias- régias com suas grandes folhas em forma de bandeja, ornadas com flores brancas e rosas, àquela hora dia, fechadas, uma vez que se abrem somente à noite para enfeitar os cabelos de Yara, a rainha dos rios e lagos da Selva Amazônica.
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O barco saiu do rio, entrou em um furo à margem direita e os embarcados foram apresentados a um lago de águas tão serenas que mais parecia um espelho refletindo a vegetação margeante emoldurada pelo o céu azul anil. O capitão calmamente atracou a lancha em um trapiche erguido por debaixo da copa de uma grande árvore ribeirinha. O burburinho dos passageiros desembarcando espantou bandos de garças, biguás, muçurungos, patos, jaçanãs e ciganas.
Depois que as tralhas de pesca espalhadas pelo trapiche foram levadas para as diversas montarias (pequenas canoas) atracadas ao longo do pequeno porto, vários caboclos que conversavam com o capitão do barco, acercaram-se cada um de um passageiro e se apresentaram como guias para orientá-los pelos diversos furos, igapós e pequenos lagos.
A Bacia do Guaporé é um impenetrável e perigoso labirinto para os citadinos recém-chegados, os "brabos".
-Dotô! O capitão me falô qui’eu é q’vou levá o sinhô. Pode ficá discansado, o Dotô vai pescar os maior tucunaré q’existi no lago "Espelho do Céu", num sabe?
-Espelho do Céu?
-Apois num é! Na verdade verdadêra, o nome do lago é "Lago do Espelho", marr'eu chamo é "Espelho do Céu", num sabe? Num vê o dotô qui paresque o céu ta dento d’água! A água daqui é clara, no intantu, paresque é azulinha, azulinha, cheia de nuve e arrodiada de mata verde. Num é verdade, dotô?
-Realmente! É muito bonito, deslumbrante até.
-Dislum... O quê, dotô?
-Deixa prá lá... Meu nome é José Carlos... Zeca para os amigos. E o seu nome, qual é?
-Me chamam de Joca Aruanã... Mas o povo todo me chama mais é de Joca. E sinhô é q’iscolhe.
-Joca... É mais fácil! E aí? Vamos pescar? Observe que todos já embarcaram e já zarparam.
-Tem importânça não... Dêxe cumigo...!! Eu cunheço todas as mãnhas dos pêxe desses lago tudo. Do jeito q’eles tão fazendo zuada, vão ispantar os pêxe tudo. Eles vão prum lado, nóis vai pru ôtro. Fique discansado, quando nóis vortar, eles vão ficar tudo cum inveja do sinhô. Pode dexá cumigo, viu?
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Joca Aruanã encostou a pá do remo no mourão do trapiche e deu um leve empuxo na igarité em direção ao meio do lago, depois pediu para o José Carlos sentar-se no banco do meio; em seguida, o caboclo acomodou-se no banco do piloto, mergulhou o remo nas plácidas águas do Lago Traíra e singrou a montaria em direção à margem oposta; chegando lá, enveredou por um furo e entrou em outro lago, o lago Espelho do Céu. Impaciente, José Carlos pegou a caixa de pesca e começou a selecionar as iscas artificiais separando-as por modalidade de atuação; isca de superfície, de meia-água e de fundo, depois, separou diversas garatéias.
Após prévia preparação dos equipamentos, pegou o molinete, trabalhou a linha e começou a lubrificar os rolamentos do carretel. De repente o José Carlos parou e percebeu que a pequena canoa estava parada no meio do lago. Olhou interrogativamente para o caboclo e perguntou:
-O que é que está acontecendo, Joca. Por que paramos?
-Adisculpe, "seu" dotô! É’qui eu fico ispantado toda veiz q’uieu ispio esse povo da cidade ficá iscarafunchando esse treco tudo quando vem pescar aqui no lago ô nos rios.
-Você está se referindo a essa tralha de pesca? Do meu equipamento?
-Isso, dotô! Num carece disso tudo, não! A gente pega a isca certinha, vai no lugarzim certim onde o bicho véve e come, e pronto! É botá ele pra brigá cum anzór. Num tem briga miór de se vê, dotô! O bicho dá cada pulo... Dessa artura, dotô... O sinhô vai ver!
José Carlos ignorou solenemente os comentários do nativo.
Joca Aruanã navegou a canoa para perto da margem, cortando no trajeto touceiras de aguapés e perimembecas, quando chegou perto das canaranas, com a pá do remo espalmada rente à canoa fundeou-a suavemente. Depois pegou a poita e bem devagar a deixou cair na água; em seguida colocou a mão debaixo do banco do piloto e pegou o “uru”, pequeno cesto de vime usado para guardar as tralhas de pesca dos caboclos, em seguida retirou uma lata de sardinha cheia de terra do pequeno cesto, pegou uma minhoca, trespassou-a com o anzol e começou a pescar pequenos peixes, lambaris de piaus, pacus, pirapitingas e sardinhas. Na medida em que ia capturando as piabas ia colocando-as dentro de uma cuia com água.
Com o canto do olho José Carlos observava a singular atividade do caboclo e para não se dar por achado lançava suas iscas artificiais para o centro do lago, esperava um tempo, recolhia o anzol manuseando a carretilha do molinete e voltava a lançar o anzol para o centro do lago.
Joca Aruanã com um leve sorriso nos lábios olhava de soslaio as tentativas inúteis do citadino e pensava “o dotô gosta de banhar anzór”. “Arri'egua, macho!”
Depois de pescar uma razoável quantidade de piabas, o caboclo pediu o molinete de José Carlos e calmamente retirou a isca artificial, em seguida fisgou uma piaba de sardinha, depois, com um movimento rápido e ágil lançou o anzol beirando a margem do lago, quase dentro de umas galhadas e troncos caídos.
Espantado, José Carlos perguntou ao caboclo se eles não corriam o risco de prender o anzol nas raízes submersas das árvores caídas. O caboclo deu um olhar condescendente para o companheiro de pesca e explicou que o anzol não iria para o fundo e sim, permanecer próximo à superfície. Incontinente, com movimentos pausados, o caboclo recolhia e parava a linha de pesca fazendo com que a isca praticamente flutuasse a flor d’água como se o pequeno peixe estivesse caçando insetos à superfície do lago. O sol cintilava nas escamas da sardinha presa ao anzol.
Depois de vários movimentos de lançar e recolher o anzol deixando-o sempre próximo à superfície; o caboclo após várias tentativas convenceu-se de que naquela parte do lago a escassez de tucunarés era visível. Pediu então para José Carlos treinar os movimentos de pesca efetuados por ele enquanto que com silenciosas remadas navegou a pequena igarité para outras áreas do lago.
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Silenciosamente Joca fundeou a montaria na sombra proporcionada por uma piranheira, e com a mão em concha, recolheu um pouco da água e refrescou a cabeça, depois orientou José Carlos a fazer o mesmo dizendo que era bom manter a cabeça sempre refrescada para evitar dor de cabeça; afinal, o calor do sol era de rachar mamona. Em seguida o caboclo lançou o anzol de sua linhada rente a uma ilha de aguapés e perimembecas. Esperou um pouco, puxou a linha, parou, puxou de novo e de repente um tucunaré de tamanho enorme, de uns seis a oito quilos e uns cinqüenta a sessenta centímetros de comprimento surgiu na superfície e partiu em perseguição à sardinha trespassada pelo anzol. Joca com destreza esperou um átimo de segundo e com um leve movimento do pulso deu um pequeno tranco para fisgar o peixe, este deu um salto espetacular, contorceu-se no ar, caiu e espadanou água para todo lado; submerso, ele nadou em direção às galhadas que circundavam a canoa. Joca percebendo o intento da presa, deu um tranco na linha e logo em seguida a soltou. Talvez, sem saber o que fazer, o tucunaré estancou, mergulhou e logo em seguida emergiu em novo salto acrobático, contorcendo-se no ar convulsivamente, abrindo e fechando a enorme boca, os olhos esbugalhados, o sol refletindo fagulhas douradas de suas escamas amarelas, as nadadeiras laterais abertas em leque, a dorsal, totalmente eriçada. Toda a ação transcorreu em ínfimos segundos. Quando Joca deu um novo puxão na linhada o gigante do lago havia escapado.
Durante toda a ação Jose Carlos estava sem fôlego, estático, a respiração vinha em golfadas de ar preso na garganta entalada. Ele não conseguia acreditar no que tinha acabado de ver. As cenas da extraordinária luta pela sobrevivência ainda estavam vivas, presas em sua retina.
-Meu Deus do céu! O que é que é isso? Cara! Jocááá...!!! Você viu o tamanho do peixe que escapou? Quando eu voltar, no “happy-hour”, se eu cair na besteira de falar no tamanho do peixe que escapou, a turma do chope vai me zoar o resto do ano. Joca, o que a gente viu... Aquilo tudo... É mesmo um tucunaré?
-Apois! Claro, dotô! Aquilo tudim qui o sinhô viu, é sim,,, É um tucunaré...!!! É o Pocidão... É o maior tucunaré desse lago... Do mundo! Eita, acuma o bicho é grande! Ééégua!!! Vixe'maria!!!
-Pocidão?
-Sim, dotô! O rei do mar... Dixe que o tarzinho é manda nas água tudo.
-Pocidão...??? Não seria Possêidon?
-É pur'aí dotô! É esse nome esquisito mermo! Pocidão!
-Mas por que Possêidon? De onde foi que você tirou esse nome? Ou melhor, como é que vocês, aqui no meio da Amazônia, nesse lugar perdido no meio do nada, conhecem esse nome?
-Num há de vê dotô, qui’tem uns dois ano, vêi um ôtro dotô qui’eu trôxe aqui e pegou e perdeu esse mermo tucunaré qui nóis perdémo, só qui ele perdeu foi duas vez, num dia só, num sabe? No ôtro dia ele pegô... Fisgô bem fisgado. E num é qui o home ficou tão admirado, tão ispantado cum tamanho do bicho, cum a buniteza dele que dixe “um pêxe desse tamãe, cum essa belezura e cu'essa valentia só pode de sê merecedô dum nome: POCIDÃO, o Rei dos Mar.
-Sabe dotô? Eu nunca vi o mar... O tar dotô me dixe que nesse tar de mar cabe milis e milis lago desse... Pelo jeito, pelo tamanho do tar mar, deve de ter muitcho pêxe grande lá. Ele dixe tubém qui esse Pocidão é muitcho grande, valente pur dimais e que manda im’tudo o qui’é água sargada, qui é assim qui’é as água do tar de mar... É verdade dotô?
Emocionado com a simplicidade do caboclo, José Carlos dirimiu as dúvidas de Joca.
-É verdade, Joca! O mar é muito grande e sua água é salgada. O seu amigo só não explicou que Possêidon é um ser da mitologia, da mitologia grega, e que, portanto, não existe! Como vou te explicar... De carne e osso, entendeu? Só existe na imaginação. Mas de qualquer forma o nome é bem apropriado... Esse peixe é poderoso e valente... Merece o nome de um deus... Merece o nome de Possêidon!
-Hummm! Nomi de um deus é? Pois olhe dotô, eu achei qui só ixistia um Deus, o Nos’Sinhor, Deus do céu... Quer dizer intão qui tem mais Deus é? Vixe Maria, num é isso qui o padre fala não!
Com um sorriso condescendente, José Carlos explicou ao caboclo que, realmente, só existe um Deus. Que esse Deus que o padre fala é o Deus dos cristãos... Que embora esse deus fosse o Deus de todos, dependendo da crença de cada um, ele recebia nomes variados.
Depois, vendo que o caboclo o fitava com a boca aberta, os olhos semicerrados e desconfiados, dando a entender que não estava compreendendo nada de nada daquela conversa estranha no meio do lago, optou por mudar de assunto, retornar à pescaria.
-Me diga lá, Joca! Pelo jeito, você já é velho conhecido desse peixe, do Possêidon. Parece até que você tem uma relação de amizade com ele. Eu tive a impressão que você até suspirou de alívio quando ele se soltou, fugiu do anzol.
-Pois num é dotô! Um pêxe grande desses, brigador, valente qui’só, num merece morrer só pra sartisfazer o capricho de quem num entende as coisa da natureza. Quem me expricou isso foi o dotô qui deu nome no Pocidão... Sabe, dotô? No dia qui’êsse home pescou o Pocidão eu fiquei muitcho cuntenti na hora da fisgada. Sabe pruquê, dotô? Pruqê a briga foi boa, demorô uma par de tempo pru mode o dotô trazer o Pocidão pra dentro da canoa. Depois eu fiquei cum pena do pêxe. Um bicho bunito daquele, valente qui’só, num mericia morrer... Fazer o quê, né? O home ‘tava pagando, tinha pescado o bicho... Sabe dotô, quando vi o pêxe no fundo da canoa, abrindo e fechando a boca, puxando fôligo na maior dificurdade... Deu pena, "seu" dotô... Deu pena!
-E o que foi que aconteceu depois, afinal, o peixe está por aí, livre, leve e solto?
-Pois intão! O home abriu uma sacola, dessas que pindura nas costa... Muchila, né? Tirô uma máquina de tirá retrato, me ispricô como mexê nela, segurô o pêxe assim, ó... Na artura do peito e dixe pra’eu tirá um retrato, dele e do Pocidão. Tirei um monte... De tudo quanto foi jeito. Adispois, pru meu ispanto, ele sortô o Pocidão... Sortô, dotô! Assim... Sem quê nem pra quê... Diante da minha cara de besta, ele dixe qui pescaria boa é a pescaria de tirar retrato... Pescar, fotorgrafá e adispois sortá o pêxe, principarmente, se fô um pêxe grande, bunito qui nem o Pocidão... Eita home “paid’égua”, dotô! De lá pra cá, sempre qui’eu fisgo o Pocidão eu fico na torcida pr’ele iscapar.
-Diga-me, Joca! Qual é o sentido de pescar e soltar um peixe?
-Ixe, dotô! Isto eu dêxo cum sinhô, num sabe? Quem sabe se o sinhô cunsiguir pescá o Pocidão, adispois o sinhô sabe a resposta! Eu já sei e é muitcho bom!
Depois das considerações pseudo-psicológicas e metafísicas trocadas entre o José Carlos e Joca, o caboclo colocou o dedo indicador sobre a boca sinalizando silêncio e vagarosamente mergulhou o remo nas águas plácidas do lago, impulsionando a igarité na direção em que o grande tucunaré havia escapado.
Distraidamente José Carlos lançou o anzol a esmo para o meio do lago.
A pequena canoa deslizava silenciosamente. O tempo passava sem que os dois pescadores percebessem. Ao redor, nas águas e nas margens, a vida fervilhava. Capivaras mergulhavam, jaçanãs voavam de galho em galho, ciganas petiscavam insetos nas ilhas de aguapés, garças davam vôos rasantes sobre as águas e cardumes de piabas escoltavam a canoa na expectativa de alguma migalha de pão ou outro alimento qualquer.
De súbito, Joca com a pá do remo parou a canoinha, José Carlos lançou-lhe um olhar interrogativo, em resposta o caboclo com o dedo apontou uma área do lago um pouco afastada da margem, o citadino olhou para a direção apontada e nada viu ou percebeu de diferente e novamente volveu o olhar para o caboclo em nova interrogação muda.
Joca Aruanã sussurrou para o companheiro:
-Olhe ali, dotô! Uns déis metro, olhe a seriringa. Olhe bem, home!
-Serir... O quê? Olhar o quê?! Não tem nada ali. A água está parada... Não vejo nada!
-Seriringa, dotô! O tremelique bem de"vagarim na flor d’água, dotô! Num tá vendo a água tremelicar bem de mansim? É o Pocidão ô ôtro pêxe grandão qui nem ele qui ta passando uns dois ô treis parmo debaxo da flor d’água, dotô! Quando isso se assucede a água tremelica na flor d’água... Isso é a seriringa, dotô!
Por mais que José Carlos apurasse a vista não conseguia vislumbrar absolutamente nada. Para ele tudo permanecia igual... A superfície da água continuava levemente encrespada pela brisa que agitava as ilhotas de aguapés e canaranas das margens do lago.
Percebendo que o homem da cidade era incapaz de perceber as sutilezas da vida na planície aquática, Joca sinalizou para o citadino lançar o anzol na direção da seriringa.
José Carlos ao perceber a sinalização do caboclo, com um leve movimento do braço lançou o anzol na direção apontada por Joca, e, obedecendo ainda às instruções do pescador, acionava e parava a carretilha do molinete fazendo com que a isca meio que flutuasse na superfície com as escamas rebrilhando ao sol. Efetuou a manobra com o anzol diversas vezes de acordo com as instruções silenciosas do caboclo, sempre alternando a direção de lançamento cobrindo mais ou menos um anglo de quarenta e cinco graus.
Num dos lançamentos da linha de pesca, quando José Carlos estava acionando a carretilha um enorme tucunaré irrompeu com violência a superfície do lago em perseguição ao anzol; a bocarra escancarada em faminto apetite tragou a piaba, o anzol, linha e pedaços de vegetações enroscadas na linha de pesca. O gigantesco peixe após abocanhar a isca, tentou mergulhar em busca de abrigo no fundo do lago. Foi contido pela linha retesada da carretilha travada automaticamente pelo brusco empuxo do peixe. A ponta do anzol cravou-se inapelavelmente na arcada dentária inferior do rei do lago.
-Eita, dotô! O sinhô pegô o Pocidão de novo! Dá linha, dotô... Num vê qui ele tá fisgado de vêiz! Dá linha e recolhe, dotô, dá linha e recolhe... Minha Nos’sinhora....!!! A briga vai sê boa... Áááárri'´éééguaaaa!!!! Vixe Maria!!!!
Com o coração aos pulos, a adrenalina a mil, o suor porejando na testa, José Carlos obedecia às instruções do caboclo sem querer acreditar no que estava acontecendo. O titã do lago dava saltos incríveis contorcendo-se no ar, e quando caia na água, nadava rente a superfície retesando a linha fazendo-a zunir soltando microscópicas gotículas de água que formava uma tênue nuvem vaporosa que rapidamente era dissipada pela brisa ambiente.
-Dá linha, dotô, dá linha... Senão o sinhô perde o Pocidão... Eita pêxe bom de briga... Harráááiiii!!!! Já vi o Pocidão dexá muitcho pescadô cum cara de taxo... Chupando o dedo qui nem besta...!!!
-Estou dando linha, Joca, mas também tenho que travar a carreira dele senão o bicho não cansa e a linha acaba... E agora, o quê é que a gente faz, fica nessa?
-Qui nada, dotô, o sinhô faz a sua parte... Dá linha e prende, dá linha e puxa... Dêxe cumigo... Eu vô remando devagazim acompanhando os movimento do Pocidão... Uma hora dessa ele cansa... Ô, se cansa...!!!
O grande tucunaré saltava, contorcia-se no ar, mergulhava, procurava as galhadas à margem do lago; a linha retesada interrompia a carreira desabalada do peixe e ele irrompia à superfície para espetaculares saltos acrobáticos... Às vezes, na ânsia de libertar-se, o grande peixe, cego pela fúria da prisão no anzol rasgava ilhotas de aguapés espalhando pedaços de folhas e raízes subaquáticas na superfície do lago. O disco solar, impassível com a luta pela sobrevivência do gigantesco tucunaré, lançava raios de luz que rebrilhavam nas escamas douradas do valente peixe.
As capivaras assustadas com o ribombar do corpo do peixe espadanando-se na água, recolhiam-se cautelosas às moitas de vegetação aquáticas das margens.
Colhereiros, garças, biguás, martins-pescador, ciganas, socós-boi, curicacas e viuvinhas agitavam as asas incomodadas com inusitada quebra de tranqüilidade do lugar.
No meio do lago, a luta titânica pela sobrevivência continuava. E a cada salto e espadanar do grande peixe na água, assustadiços cardumes de filhotes de curimbas, tambaquis, jatuaranas, piaus, pacus e matrinchãs em fuga, fervilhavam a água ao redor da igarité.
Joca Aruanã sorria, satisfeito com a valentia do seu peixe favorito, seu ídolo inconteste.
-Dá-lhe no couro, Pocidão... Mostra pr’ele o qui’é um bicho bom de briga... Dá-lhe Pocidão... Eita pau!
E o embate continuava... José Carlos acionava a carretilha... Ora soltava a linha, ora recolhia... O suor molhando a testa e as costas... A camisa ensopada grudava ao corpo suarento... As juntas dos dedos apresentando manchas brancas provocadas pela tensão.
Joca Aruanã controlando com destreza a igarité exultava na torcida pelo peixe brigador.
-Eita, bixiga! Num é qui’ele vai iscapulir, dotô! Ninguém sigura o Pocidão... Vixe!
José Carlos concentrado na briga com o grande peixe, vagamente escutava os vivas do caboclo que, descaradamente, torcia pelo peixe.
-Dá-lhe Pocidão! Amostra pr"ele, Pocidão!
Depois de uma longa e inglória luta, o gigantesco tucunaré quedou-se exausto, impotente na superfície do lago, a enorme boca aberta em exaustão.
Enquanto acionava a carretilha do molinete para trazer o troféu para o barco, José Carlos estranhou a quietude do caboclo e dos habitantes do lago.
Emudecidas e paradas, a fauna aquática, alada e terrestre fazia um respeitoso silêncio diante da capitulação do titã dourado com manchas negras, que, flutuando vencido, resplandecia com suas escamas cor de ouro, os raios do sol que banhavam o lago.
Com a voz embargada, Joca Aruanã, quase que num sussurro perguntou para José Carlos:
-E agora, dotô, o qui’é qui o sinhô vai fazer cum ele?
-Eu? Ora, levá-lo para casa. Afinal, quem ganhou a briga fui eu, não foi?
-Foi, dotô! Infilizmente, foi o sinhô, dotô! Me diga, dotô? O sinhô vai... vai...
-Vou, Joca! Vou levá-lo para casa eternizado numa fotografia... Num retrato, como você diz! Vamos homem, pegue a minha máquina fotográfica aí na mochila e tire umas fotos... Uns retratos... Capricha aí, hem!!!
Com um sorriso de orelha a orelha,feliz da vida, Joca Aruanã abriu a mochila para pegar a máquina fotográfica.
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De súbito José Carlos foi sobressaltado por um buzinaço infernal... Piscou, despertando do devaneio... Ele já não estava no Vale do Guaporé... Estava no meio do ‘rush’, tinha um espaço enorme à frente do seu carro, e à sua traseira os outros motoristas buzinavam com insistência alertando-o para avançar.
Sem presa, José Carlos baixou o quebra-sol do carro, pegou uma fotografia em que posava segurando um gigantesco tucunaré no meio de um lago... Sorriu saudoso e deu a partida no carro, avançando devagar...