A solidão que nos conecta...
- Marcelinaaaaaa!! Levanta daí, vamos caminhar comigo, você parece que nasceu grudada nesse computador!!!
- Não mãe, vai a senhora, eu estou muito ocupada aqui.
- Ocupada com o que minha filha? Com alguma fazenda virtual? Pôxa! Você já tem 28 anos, nunca arrumou um namorado, está cada vez mais gorda, onde você vai parar, minha filha?
- Ah, mãe! Vê se larga do meu pé. Eu tenho namorado sim, o Alex, já te falei, inclusive agora estou teclando com ele aqui! Será que dá pra senhora parar de me atrapalhar?
- Tudo bem filha, não está mais aqui quem falou! E de que adianta um namorado que parece que não existe? Cadê ele? Por que não vem te conhecer?
- Ah, ainda não estou pronta pra um encontro, mãe! É só isso! Mas nós nos amamos muito sim! Ele me disse que nunca conheceu ninguém como eu, linda, inteligente, educada...
- Isso eu vou ter que concordar mesmo e... Mas o que é isso Marcelina? Que foto é essa aí?
- É aquela foto minha, que tirei na formatura da Marcela, lembra?
- Até se parece com você, minha filha, mas uns 50 quilos mais magra! Que foto é essa, Marcelina?
- É essa foto que eu te falei, mas eu fiz uns retoques no fotoshop pra poder ficar mais apresentável e...
- Não quero mais ouvir nada! Por isso que você não traz esse tal de Alex aqui em casa ou onde quer que seja! Ele pensa que você é outra pessoa, não te conhece como realmente você é!
- Mas mãe, quando eu emagrecer ficarei exatamente assim!
- No dia de São Nunca! Quem é que emagrece, passando a vida sentada na frente de um computador e só comendo porcaria? Ninguém, ninguém! Ouviu bem? E com licença que eu vou caminhar e respirar ar puro!
E assim Marcelina passava seus dias, viajando na internet, “conhecendo” novas pessoas, fazendo novos “amigos”. Porém nunca saía de casa. Vivia da gorda pensão que seu pai militar havia deixado pra ela. Sua mãe também era aposentada, portanto não precisava do dinheiro dela. Sair de casa era algo que Marcelina não experimentava há meses, somente comia comida pedida pela internet, tudo que comprava era pela internet. Vivia exclusivamente num mundo virtual.
Suas fotos eram divinas, maravilhosas mesmo. Ela era uma mulher muito bonita, de olhos claros, alta, seu único "porém" era o sobrepeso. Não sabia ao certo o quanto estava pesando, mas, há quatro meses, da última vez que saiu de casa e teve coragem de se pesar, já havia passado dos 120 quilos.
Mas ali, na roda de amigos virtuais, ela era a popular, a mais bonita, pois o fotoshop havia dado um jeitinho nos quilos a mais que ela tinha. E realmente as fotos ficaram maravilhosas. Alex estava doido para conhecê-la, mas ela o enrolava o mais que podia, afinal, precisava emagrecer primeiro. E assim Marcelina levava a vida. Cuidava de várias cidades e fazendas virtuais, fazia parte de todos os sites de relacionamento que conhecia. Era o mundo inteiro que ela desbravava de dentro do seu quarto.
A mãe sempre reclamando, dizendo que ela não tinha amigos, que ela não fazia nada da vida dela. E ela sempre contestando, que tinha sim, muitos amigos, e que se divertia muito pela internet. Que era adorada por todos que conhecia, que era feliz e que iria continuar a vidinha dela dessa maneira mesmo. E assim foi por mais dois anos ininterruptos, sem sair de casa. Ela só se levantava para ir ao banheiro, tomar banho e pegar a comida que comprava pela internet.
Sua mãe já havia desistido de tentar levá-la pra vida real, de tentar transformar o cotidiano dela, de pedir que ela fizesse algo por si mesma. Tinha dias que Marcelina nem sequer via a mãe, e isso já estava tornando-se cada vez mais corriqueiro. E foi numa semana dessas, que dona Celina, com saudades da filha, foi ao apartamento dela, que ficava ao lado do seu, germinado. Ela ficava bestificada, por morar tão perto da filha e estar, ao mesmo tempo, tão afastada dela. Dona Celina tocou a campainha umas três vezes e nada, silêncio total. Ela, no mínimo, achou aquilo estranho, já que a filha nunca saía. Tentou entrar e a porta estava trancada. Esmurrou a porta e nada. Chamou um vizinho, que arrombou a porta e, ao entrarem, sentiram um cheiro insuportável de coisa estragada. Dona Celina correu pro quarto da filha e, a cena que viu, foi o reflexo da vida virtual em que Marcelina se embrenhara. Vida essa que a levou a uma extrema solidão real. Marcelina estava ali, caída no chão, já aos pedaços e sendo devorada por meia dúzia de urubus, que foram atraídos pelo cheiro e entraram pela janela.
Na tela do computador havia algumas mensagens, reclamando do sumiço da moça, mas dona Celina não entendia nada daquilo. A polícia foi chamada, o IML acionado e a causa da morte constatada. Marcelina foi vítima de um enfarto fulminante há quase uma semana, por isso o estado de decomposição tão avançada. O velório foi rápido e solitário. Nenhum amigo, muito menos namorado, somente a mãe, duas primas e uma tia por ali. As primas foram logo embora, pois tinham que olhar os e-mails, a tia passou mal e foi pro hospital e dona Celina sepultou a filha, sob um desejo que tornara-se o epitáfio: - “Que ela mude de vida!”