Pincel de barba

No banheiro da casa do pai, há pouco enterrado, ele se olha no espelho. Perturba-se ao ver os olhos ainda secos.

Senta-se no vaso, assim sem abaixar a calça. Sensação estranha. Mas isso não impede o retorno da frase fatal: meu pai está morto. E fica absorvido por ela como um mantra mental. Súbito, lembra-se dos olhos do pai. Quando menino, achava que aqueles olhos grandes podiam ver tudo. Depois viu que não, seu pai não enxergava tudo.

Essa lembrança força-o ao chão, numa posição quase fetal. Olha as mãos. No velório olhou muito as mãos do pai. Nunca tinha reparado no quão parecidas eram com as suas. As mãos são um grande problema, no caixão entrelaçam-nas por não saberem o que fazer com elas.

Aproveita-se dessa divagação rasa para pôr-se de pé. Vê então um pincel de barba em cima da pia. Sente pena do pequeno objeto que não mais cumprirá sua rotina de tocar o rosto do pai, o mesmo rosto que ele quis tantas vezes tocar, mas que por medo (ou pudor) não tocou. Sente o cheiro do pincel e lembra que gostava de ver o pai fazendo a barba. Parece que finalmente irá chorar. Mas não, não chora.

Batem na porta. Ele diz que já vai. Põe no bolso do paletó o velho pincel, mas vacila antes de sair. E fica lá, sem saber se o leva consigo ou se o deixa no lugar onde o pai o havia deixado.

(Extraído do livro "As coisas que chamamos de nossas")