A Lua Sorri

Tiago saiu de casa batendo a porta com toda força que tinha, atrás de si. Pôde ouvir o barulho dos vidros trincando. Estava outra vez saindo daquela forma de casa, outra vez para caminhar com sua companheira: a lua.

Fazia frio naquela noite e ele estava surpreso que não estivesse chovendo como quase sempre. O céu estava limpo e quase sem nuvens, a lua aparecia bem sobre sua cabeça. Ele olhou para ela antes de começar a andar e se distraiu. Só voltou a si quando viu que a porta de sua casa estava sendo aberta pelo lado de dentro. Correu. Tudo que menos queria era estar com aquelas pessoas, não queria nem mesmo vê-las.

Os gritos daquela casa ainda ecoavam na cabeça do garoto e pareciam cada dia mais altos, talvez pela freqüência com que aconteciam. Só queria esquecer, queria que seus ouvidos fossem como os olhos, tivessem pálpebras e pudesse fechá-las quando quisesse. Mas não tinha. Mesmo trancado em seu quarto, com a música alta alguém sempre encontrava uma forma de trazê-lo para o epicentro diário da tortura: a sala de casa. Era lá que todos brigavam quase todas as noites, onde sua paciência adolescente era testada ao limite e ele até se orgulhava do quanto conseguia resistir, mas nem sempre era capaz de se controlar tanto.

Enquanto andava pela rua quase vazia àquela hora da noite não conseguia deixar de repassar tudo em sua cabeça.

A irmã, quatro anos mais velha, mas retardada e tão madura quanto uma criança de seis anos – sem nenhum problema de retardo realmente diagnosticado – era pura burrice. Hoje, ela estava mais uma vez ouvindo suas músicas (para o bairro todo ouvir junto) e berrando com o namorado ao telefone até que incomodou o pai, esse em estado mentalmente vegetativo, quase não fala e quando fala, reclama. A mãe chegou da academia no momento da briga dos dois, o cenário perfeito para ela.

Lurdes, a mãe, era um ser incompreensível. Uma mulher de 46 anos que insistia em ter 25, estava ridiculamente deformada por duas cirurgias plásticas e um bronzeamento artificial e tinha uma capacidade magistral de estar disposta a qualquer momento do dia ou da noite para uma briga com quer que fosse. Hoje ela estava empolgadíssima, já chegou em casa aos berros porque estava ouvindo os berros vindos da casa.

- Seu imbecil, inútil, gordo imundo, cala a boca e deixa a menina em paz! Ela tem vida! O namorado é dela, deixa ela viver como ela quiser, seu merda. Você fica aí sentado a porra do dia todo e ainda quer reclamar da porra da vida da outra?! – Foi o que substituiu um “boa noite, amor”, que seria mais comum.

O pai – mais uma vez – falou que não podia trabalhar por causa da coluna e blábláblá, ela vivia com a aposentadoria dele e blábláblá. A irmã continuava gritando como se fosse um bebê e falando de um jeito tosco ao telefone.

O garoto estava o tempo todo no quarto, como sempre ficava depois da escola depois que foi proibido de trazer os amigos em casa, os únicos dois amigos que ele tinha perto de casa eram chamados, no mínimo de “viadinhos filhos da puta”, se Lurdes estivesse afim. Tiago se sentia um lixo quando isso acontecia e queria morrer de vergonha por aquela mãe. Um dia um amigo a respondeu e foi expulso. Não trazer mais os amigos em casa tinha o lado positivo de poupá-lo dessas eventuais situações, mas o fazia ficar completamente sozinho naquela casa todas as noites. Até a internet foi tirada dele porque a irmã quebrou seu computador e fez uma revolta até conseguir o de Tiago.

- Puta merda! Ela é burra, quebrou a merda do computador porque não sabe usar, agora quer o meu? Ela vai quebrar esse outro também e por que eu tenho que ficar sem nada?!

- Ela precisa fazer os trabalhos da faculdade... – foi a justificativa do pai.

Ela estava no 2º período de uma faculdade particular (pela segunda vez) e não tinha nenhum interesse nisso, foi reprovada por faltas.

Tiago já estava cansado e desistiu, nesse dia tinha gritado como os outros. Decidiu encará-los como eles mesmo faziam, mas o garoto não gostava e nem sabia fazer isso direito.

Ficava cada vez mais só.

Nos finais de semana os quais não o deixavam sair – e eram muitos – era obrigado a ficar o dia todo ouvindo as músicas do pai enquanto bebia. Nesses dias ele cogitava até o suicídio.

Tiago vivia assim há tanto tempo que já nem lembrava mais da última memória feliz de sua infância, agora com dezessete anos estava cada vez mais sozinho e isolado daquilo tudo, queria distância, queria fugir. Por isso que saía a noite para caminhar pela rua vazia.

- Se algum marginal aparecer e você morrer eu não vou correr atrás, viu?! – gritou Lurdes uma das vezes que ele saiu à noite.

Tiago levantou o dedo médio para trás e continuou andando.

- Seu merda!

A noite fria e a rua quase deserta eram de alguma forma, um refúgio. Ele conseguia respirar, não se sentia tão preso.

Hoje, mais uma vez, houve uma briga na casa, uma gritaria sem fim. No meio da discussão com a mulher, George, o pai, foi ao quarto de Tiago para fazer qualquer coisa. Estava trancado. Eles esmurrou a porta com tanta força que derrubou o cabide que ficava preso à porta no lado de dentro. Tiago correu para abrir e esqueceu de guardar um detalhe.

- Que porra é essa, seu maconheiro, o que você tá fazendo na minha casa?

Ele esquecera de esconder uma carteira de cigarros de cravo.

- Isso não é maconha. – respondeu, falando baixo.

- Lurdes, vem cá, vem ver o que o seu filho tá fazendo aqui!

Ela provavelmente não viria se ele chamasse, mas sabendo o que aquilo poderia se transformar, em segundos, já estava ao lado do marido.

- Olha lá, seu filho agora é um maconheirinho! - George falava cuspindo.

- Filho da puta! – ela falou cada palavra pausadamente, como se fosse um crime monstruoso e muito surpreendente, sem mesmo ter noção de quem estava xingando.

E começou a gritaria que Tiago mal conseguia acompanhar. A irmã chegou e começou a participar da festa.

- Já disse, isso é um cigarro, só um cigarro normal, vocês fazem coisa bem pior! Puta merda, deixa de hipocrisia!

- Hipocrisia é você, seu idiota! – resmungou a irmã.

Mais e mais gritaria, até que Tiago ficou cansado de escutar e repetir as mesmas coisas, afastou a irmã para o lado com o cotovelo, pegou uma mochila embaixo da cama e saiu do quarto.

- Vai sair de novo, seu merdinha? Vai encontrar os traficantes?! Se você virar um viciado eu não quero nem saber.

- Você não vai saber. – disse Tiago, sério.

- Não me responda, seu porra. – Lurdes gritou e puxou o garoto pelo braço com tanta força que suas enormes unhas pintadas de vermelho pareceram derreter o esmalte de repente quando tiraram sangue do braço branco e magro do garoto.

Tiago puxou o braço para si com força, olhou para ela com ódio. Olhou para aquela casa e aquelas pessoas e saiu sem falar mais nada batendo a porta.

Agora, estava caminhando pelas ruas com aquela pesada mochila nas costas. Era muito tarde e havia menos pessoas nas ruas do que das outras vezes. Ele continuou seu caminho com a melhor companhia e única que podia ter: a lua, hoje, crescente.

Pouco depois, Tiago chegou até um ponto de ônibus. Havia um ônibus parado e alguns passageiros descendo, o garoto mal pensou nas alternativas e no que ia fazer, simplesmente embarcou. Tinha algum dinheiro na mochila, pagou e entrou.

Havia quatro pessoas no ônibus. Um casal de namorados, um senhora e uma garota. Tiago passou pelo corredor ao lado da garota pensando em sentar em um dos muitos assentos vazios, porém ela tocou o braço dele e sorriu.

- Senta aqui. – convidou.

Surpresa era muito pouco para o que ele sentiu, mas não quis saber disso. Sentou ao lado dela.

- Pra onde você tá indo? – ela perguntou.

- Pra... não sei bem. – Tiago decidiu ser sincero.

- Hm, interessante. E a mochila? Vai ficar muito tempo nesse lugar qualquer que você vai?

- Vou, acho que não vou voltar.

O ônibus fez uma curva e ele perguntou:

- E você, pra onde vai?

- To indo pra casa, cheguei de viagem hoje.

- Onde estava?

- Berlim, esse era o único ônibus que passava pelo aeroporto essa hora, um horror esse transporte.

Tiago olhou pela janela, viu a rua, algumas pessoas e lua, novamente.

- Ah, meu Deus! Seu braço – ela baixou mais ainda a voz – tá sangrando.

Ele nem tinha percebido que o corte estava à mostra, virou o braço.

- Tudo bem, é só um cortezinho.

Ela limpou o sangue com um lenço azul que tirou da bolsa.

- Ok, se você diz que tá tudo bem, tudo bem... Depois você vai me contar isso, eu sei.

- Vou? Como você pode saber disso?

- Não ache estranho isso que eu vou contar, mas eu sei o que está fazendo. Eu já fiz isso... Você está fugindo de casa, nessa mochila deve ter algumas roupas, dinheiro e umas coisinhas que você deve achar fundamentais. Você não faz idéia para onde quer ir, só não quer nem pensar em voltar.

O silêncio às vezes é a melhor resposta.

- Você pode dormir na minha casa, se quiser, eu moro sozinha, a gente não está muito longe de lá.

"Por que ela estava fazendo isso?". Era tão... estranho, para ele.

- Ok, se você não quiser, tudo bem, não se preocupe com isso, sei que você tá muito confuso.

“Confuso, com muita raiva, com dor e até com fome, muito bem, campeã!”, pensou. Por algum motivo ele não conseguiu falar. Ela colocou um fone de ouvido na orelha e o outro delicadamente na orelha de Tiago. Ele tomou um leve susto e começou a ouvir a música. Era "Don’t You Remember", da Adele, ele conhecia a música e achava linda, genial. Tiago conseguiu sorrir de leve.

- Vai ser ótimo poder ir pra sua casa, obrigado. – Ele murmurou depois de algum tempo.

Ela apertou a mão dele, que estava perto da dela, delicadamente e sorriu.

Dois pontos depois, eles desceram. Estavam num bairro de classe média que Tiago não conhecia. Conversaram um pouco sobre algumas banalidades, sobre a noite e sobre Berlim, além disso, ela disse seu nome:

- Ah, Bárbara.

E estendeu a mão sorrindo.

- Tiago.

No caminho até a casa dela, mais uma vez ele observou a noite em volta. Fria, vazia e a coisa mais perto do que se poderia chamar de acolhedora, para ele. Bárbara fez barulho com as chaves e abriu a porta. Antes de entrar, Tiago deu uma última olhada na sua melhor companheira, a lua, crescente daquele jeito em forma de sorriso. Olhou para trás e viu a garota encostada na porta esperando por ele, entrou na casa dela com uma tranqüilidade que nunca sentira antes e nem conseguia explicar, talvez porque em sua cabeça não houvesse mais aqueles gritos.

Olavo Ataide
Enviado por Olavo Ataide em 25/05/2011
Reeditado em 26/05/2011
Código do texto: T2992455
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