Inspiração na tradição indiana
Um convite inesperado chegou às mãos de Bia. No mês de agosto, um centro de cultura indiana da sua cidade, cujo nome era Kerala, em homenagem ao estado indiano localizado no sul do país e abraçado pelo mar da Arábia, estava comemorando os 61 anos da declaração de independência da Índia (15/08/1947), quando o país deixou de estar sob o jugo do colonialismo britânico.
Uma festa que evocava toda a tradição milenar daquele país se realizaria dali a alguns dias e uma amiga sua, Luciana, que era uma atuante assessora de imprensa na cidade, conhecendo a sua paixão por história e geografia, enviou-lhe o convite. Era uma oportunidade única para ter contato com a cultura, a música, a dança, a culinária e a espiritualidade de um nação multifacetada e que, até hoje, instiga e surpreende todo o mundo ocidental, com os seus contrastes, sua intrincada população de deuses e deusas, a pobreza pungente e a sua força econômica crescente, que, aos poucos, está colocando-a no seleto grupo dos países em ascensão, candidata a se tornar, junto com a China, uma das mais novas potências mundiais.
Uma onda de deliciosa excitação percorreu todo o corpo de Bia. O exótico a atraia. Ela adorava encher os olhos com uma profusão de cores e suas variadas nuances. Ver gente diferente, com traços que, nem de longe, lembravam o povo que veio da Europa, do qual a maioria dos que conhecia descendia. Suas ávidas narinas sempre buscavam captar os aromas quando chegava num lugar desconhecido.
Ficou em dúvida que roupa vestiria. Não se sentia à vontade para trajar uma roupa tradicional,como um sari, mas queria usar alguma coisa que evocasse a cultura indiana. Optou por um vestido simples preto, que ressaltava os antigos brincos e braceletes de prata, incrustrados com belas esmeraldas, presente da sua querida irmã, que ela guardava com todo o carinho e usava somente em ocasiões especiais. Nos ombros, levaria um xale de pura seda, também presente, que ganhou de sua amiga e livreira preferida, viajante convicta, que foi aos confins do longínquo país, fazer um retiro espiritual de três meses num ashram aos pés dos místicos Himalaias.
Quando chegou ao local do evento, uma suave música enchia o ar com seus sons harmoniosos. Era a música clássica hindustani tocada com maestria. Essa música é milenar e remonta a 3.000 a.C. Tem como princípios básicos a raga, que é a linha melódica e a tala, que é o ciclo rítmico. Não há partituras e seqüências de notas a serem seguidas, o que confere ao músico plena liberdade para interpretar e improvisar, imprimindo a sua característica pessoal.
O palco estava iluminado apenas por velas. Uma tênue luminosidade envolvia os músicos, que tocavam seus instrumentos sentados ao chão, sobre tapetes. Bia foi se familiarizando com aqueles instrumentos musicais, que lhe eram desconhecidos até então. A cítara, um instrumento de corda. Uma espécie de flauta, da família do oboé, chamada shehnai, espalhava o seu som por todo o ambiente. Havia também a tabla, instrumento de percussão formado por uma dupla de tambores, que imprime à música um ritmo rápido. A voz de uma cantora abraçava calidamente as notas que saíam dos instrumentos, culminando num concerto que vibrava na alma das pessoas num ritmo primitivo e gutural.
Lindas hostess do mundo oriental, com os olhos pintados com kajal e mãos adornadas com maravilhosos e intrincados desenhos de henna, envoltas em saris de seda, que farfalhavam ao menor movimento, recepcionavam os que chegavam. Ofereciam aos convidados gotas de uma maravilhosa sinergia de óleos essenciais tipicamente indianos. Assim que Bia recebeu as gotas perfumadas no seu pulso, notas de flor de lótus, vetiver, rosa, jasmim e sândalo invadiram as suas narinas, fazendo com que ela mergulhasse nos mistérios daquela terra, deixando-se envolver completamente pela atmosfera rica e exótica.
O chão estava coberto com ricos e ornamentados tapetes Dhurrie, tradicionais do estado de Andhra Pradesh, localizado no sul da Índia. Sobre os sofás, as pessoas se recostavam languidamente em almofadas de seda das mais diversas cores, lindamente bordadas com fios dourados. Um enorme espelho com moldura dourada dominava uma das paredes do salão. Quem por ali transitava podia ver a sua imagem refletida, brincando com a luz das velas, que dançavam por todo o ambiente. Panos etéreos, numa variedade colorida de verde, rosa, púrpura, ocre e amarelo, pendiam do teto, balançando conforme as pessoas passavam, trazendo à memória as tendas das caravanas do deserto que Bia encontrou em tantas histórias que leu ao longo da sua vida.
Para que os convidados pudessem perceber de maneira visual, sensorial e olfativa os aromas que são a alma da Índia, foram colocados displicentemente sobre as mesas de apoio vários recipientes com diversas especiarias. Aromáticos cravos estavam acondicionados em pequenas caixas de papie machê. Pencas de pimenta vermelha, secas ao sol, pendiam de vasos incrustrados de madrepérola, criando um maravilhoso contraste de cores. Ramas de canela adornavam antigos potes de água, os lotas, objetos de metal que, na antiguidade, eram utilizados para fins domésticos. Cardamomos enfeitavam caixas de madeira trabalhadas, que lembravam os delicados entalhes em mármore do Taj Mahal, um dos monumentos mais famosos e visitados do mundo, situado na cidade de Agra, grande sede do império mogul nos séculos 16 e 17 e que foi construído pelo imperador Shah Jahan, em homenagem à sua esposa favorita, Mumtaz Mahal.
O aspecto político relacionado ao movimento de independência da Índia, principal motivo da grande comemoração, estava simbolizado pelo sal que repousava em imensas bandejas de prata. Por volta de 1920, Gandhi, até então um advogado, assumiu a liderança do Movimento Nacional, que exigia um governo indiano independente da Inglaterra. Através de uma revolução pacífica, baseada no princípio da não-violência, ele incitou o povo a resistir contra as leis e instituições britânicas. Um dos instrumentos dessa revolução promovida pelo Mahatma (*grande alma) foi incentivar a população a produzir o seu próprio sal, deixando, assim, de pagar os altíssimos impostos tachados sobre o produto pelo governo da Inglaterra. No dia 15 de agosto de 1947, finalmente terminou o período de colonialismo britânico sobre todo o território indiano. Naquele dia, Índia e Paquistão nasceram como nações independentes, dividindo o sub-continente indiano em dois países.
Nesse momento, passam por Bia bandejas com copos coloridos, filetados com dourado. Dentro deles um líquido castanho claro espera por bocas ávidas em conhecer novos sabores. É um massala chai, temperado com cardamomo e gengibre. Quando sorveu os primeiros goles, um sabor refrescante brincou com o céu da sua boca, fazendo com que estalasse a língua. A sua incursão pelo mundo das especiarias estava apenas começando.
O jantar oferecido obviamente foi vegetariano. Uma seleção de pratos foi servida, em pequenas porções, para que todos pudessem experimentar tudo. O banquete politicamente correto iniciou com chapati, um dos mais populares pães da Índia, servido com chutney de tomate. Comida para se comer com os dedos. As papilas gustativas de Bia perceberam um sabor condimentado, doce e picante, que lhe era desconhecido. Na sequência, veio um prato de vegetais. Uma mistura de couve-flor e batata temperada com mostarda preta, cominho, gengibre, pimenta e cúrcuma, servido num pacote de folha de bananeira presa por um palito de bambu. Tudo muito simples e elegante. Estava delicioso. Depois, um substancioso dal (ensopado) foi colocado na sua frente. A combinação das lentilhas temperadas com sementes de coentro e espinafre fresco reconfortou a sua alma. Como era uma ocasião festiva, um rico arroz, chamado pushpanna, veio acondicionado num pequeno recipiente de cerâmica. Aos grãos dourados pelo açafrão somavam-se os sabores de noz-moscada, erva-doce, canela, cominho, cardamomo, cravo e assafétida, com toques sutis de pimenta do reino e vermelha. Coroavam o prato castanhas de caju partidas, amêndoas em lascas, uvas passas, coco fresco ralado, ervilhas cozidas e cubos de panir (ricota caseira).
A refeição havia sido extensa. Em que pese a sua grande curiosidade, Bia não conseguiu experimentar a sobremesa, chaval ksira, doce cremoso de arroz com leite, aromatizado com cardamomo. Estava farta. Preferiu apenas um lassi de rosas. A bebida esbranquiçada, resultado da mistura de iogurte natural, água de rosas e açúcar, veio servida num copo enfeitado com uma pétala de rosa. Um final maravilhoso.
Após o lauto banquete, a programação seguiu com uma apresentação de dança clássica indiana. Dançarinas que cursaram a lendária escola Nrityagram apresentaram-se lindamente, ao som de cítaras e tablas. Bia ficou maravilhada com a força de expressão das suas mãos e olhos. Os movimentos eram sinuosos e conseguiam demonstrar sensualidade e espiritualidade ao mesmo tempo. Guisos, melhor falando, Ghungroos, estavam atados aos tornozelos das dançarinas. O som emitido pelo seu chacoalhar ajudava a marcar o ritmo da dança.
Ao fim da apresentação, todos estavam extasiados e totalmente envolvidos pela energia que emanava da dança e da música. As dançarinas se retiraram, mas os músicos continuaram a desenvolver a sua maravilhosa arte. As pessoas queriam mais e, aos poucos, começaram a retornar para o espaço vazio do salão. No começo, seus movimentos eram lentos e tímidos. Alguém mais extrovertido insinuava o mesmo movimento de mãos e quadris das dançarinas. A sala foi se enchendo e a música foi adotando um movimento cada vez mais rápido, muito marcado pela tabla. Logo a timidez foi embora e todo o grupo pôs-se a dançar, girando em círculo, numa bela dança circular, que transmitia, para todos, a alegria e a simplicidade do momento.
Bia foi contagiada pelo ambiente vibrante e entrou na roda, permitindo que os sons inundassem a sua alma e guiassem os seus movimentos. Fechou os olhos e teve a impressão que nada mais existia, somente o momento presente. Deixou de lado todas as suas inquietações, expectativas e frustrações. Seu corpo era todo movimento. Uma imensa alegria emergiu das suas entranhas e um riso solto saltou da sua boca. Dançou até cansar e as pernas não mais obedecerem.
Antes de sair, hidratou-se com um refresco de vetiver. A cor verde maravilhosa fazia parecer que havia luz no copo. A bebida lhe deu fôlego para ir embora. Agradeceu muitíssimo à sua amiga pela oportunidade. A sua alma estava leve. A experiência vivida provocou intensamente o seu espírito curioso e Bia tomou uma decisão. Num futuro próximo, viajaria para a Índia para conhecer, ao menos, uma fração daquele país de extensão continental.