ELEGIA AO DEFUNTO ANÔNIMO *

Lá estava estendido, parecendo bicho acuado, um riso profundo, um vago no olhar, uma história vulgar, como tantas.

Ferida feia, monte inerte, um contratempo ao trânsito caótico, esparramado na via pública como em um abraço no chão de betume, redenção de um ébrio em fim de uma noitada intensa.... O piche negro, face a face, um beijo no asfalto. Peito desfraldado, imberbes cabelos, alourados sujos, filetes rubros empastados... Um sonho estranho, uma fita de cinema ou crônica policial.

Das atenções alvo comentado, enfim por uma vez notado, percebido, no incômodo que seu corpo dilacerado, exposto, visível, deplorável, apresentava aos olhos de todos... para alguns condolências, noutros repugnâncias, mas, para o certo ou errado, tinham que vê-lo , não havia como escapar, estava denunciado como um morto anônimo, mais um, a ser retirado do caminho. Mas estava na passagem, reclamando providências, existindo por fim na inexistência, era alguém que pedia, em reclamos mudos, socorro.

Incomodava, era um semelhante, quisessem ou não, também um mortal.

curiosos na anatomia do corpo decrépito, a veia saltada no pescoço – será que gritara ao morrer ?

Turba mansa aturdida, seguindo passiva, imersa em si, evasiva, nada mais era que um contratempo, incidente de percurso, já acostumados. No curso da massa caminham, seguem unidos, desconhecidos, em suas rotas , distraídos. Onde a morte de um mendigo, não era fato anormal, mas algo corriqueiro, banal.

Metidos, enfiados em si mesmos, sufocados na pressa de chegar a algum lugar de nome lar, onde frente à televisão vão cochilar e acreditar, esquecer se esquecendo. Postergando anseios para depois, adiando a vida para um amanhã talvez. Fazendo contas, projetando planos, dilatando sonhos. Arquitetando no hoje um futuro além, em diálogos sussurrados, comendo fatos, boatos em arrotos. Falas mal digeridas, desatentas, confundidos em alienados apetites.

Como toda rotina, despertam amanhã, reiniciam a marcha – morto, qual morto ? O de ontem, ah, já sei !

Reiniciam a caminhada, ilhados em si, solitários na multidão

apressados, compassados, compenetrados, atolados nos coletivos, aturdidos em seus caminhos e destinos

Na sua solidão de cadáver, reconheceu o cuidado de um transeunte, por compaixão ou para encobrir aquele escândalo, abriu um jornal e o cobriu, sentia-se reverenciado naquele dúbio gesto, para tirá-lo das retinas enojadas ou preservá-lo na sua intimidade...

Tantos olhares atraiam a sua andrajosa figura semi nua, ofuscada até então, tantos comentários, inquirições sobre os fatos que culminaram com aquela tragédia, nunca fora o centro de atenção alguma, nem mesmo de si tomava ciência, a vida era como se apresentava, uma busca insana para abrigar-se em algum vão de marquise,fugindo da chuva ou do frio, um pão seco que fosse para acalmar o estômago, nada além...

Ah, se soubesse, sonhasse viver, que tantas pessoas, transeuntes e motoristas, parariam para vê-lo, desejaria ter vivido mais, talvez como alguém menos insignificante...da vida não um trânsfugas à deriva de si mesmo, imerso na insanidade de seus dias, na falta de objetivos e de esperanças... Sem um teto e entes queridos, na fartura de suas carências.

Talvez viver como vivem tantos, os tidos como normais, sendo alguém na multidão, ter sido mais que uma sombra, a estender as mãos imundas para colher esmolas, dadas não pela caridade espelhada na solidariedade humana, mas para se desvencilharem de sua figura repulsiva. Tantas vezes o poupavam de implorar, atiravam as moedas temendo que se aproximasse, não precisava pedir, dispensavam ouvi-lo...as moedas caiam pelas calçadas, e as recolhia, até que somadas representasse algum valor para se comer algo. Que alguém, por caridade, pudesse comprar para ele, pois não o deixavam entrar em lugar algum, pelas rotas vestes e odores que exalava. Então, mesmo com o dinheiro para pagar era expulso, como um animal empesteado, um ser desprezível e abandonado.

Ah, talvez o mundo não lhe fosse assim tão indiferente, tampouco causasse repulsas como imaginava...se tivesse imaginado que olhariam para ele, teria tentado viver mais, não sendo apenas um mero número, um a mais, que era...

*PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CONTOS DA CBJE, RIO DE JANEIRO-RJ, EM JUNHO DE 2012.