Sua excelência o rádio
Década de 50. O aparelho de rádio era artigo de luxo e símbolo de status para quem o possuísse. Na vila de Pimenteira, somente o Coletor de Impostos possuía um. Não era de estranhar, portanto, que a engenhoca fosse objeto de consumo mais desejado pelos menos aquinhoados, principalmente os interioranos.
Ainda garoto, aos 11 anos, nunca tinha arredado o pé da vila aonde nasci. Confesso que fiquei maravilhado ao ouvir o aparelho pela primeira vez.
Na minha simploridade capiau, aquela caixa de madeira falando, era o máximo! Era uma coisa de outro mundo! A minha primeira impressão era a de haver ali dentro, escondida, uma miniatura de gente.
Isto, mesmo eu já tendo ouvir falar da novidade do eletrodoméstico por intermédio de Vilobaldo - filho do senhor Benedito - que, de quando em vez, viajava para a cidade de Ilhéus, de lá retornando cheio de novidades.
À noite reuníamos vários garotos no jardim da praça e perdíamos horas a fio ouvindo Vilobaldo falar das modernidades que ele acabara de conhecer ou tomar conhecimento da existência na cidade grande.
Falava com ares de superioridade e todos o respeitavam como a um líder. Foi ele que também nos falou, pela primeira vez, da invenção da televisão, descrita por ele como uma caixa bem maior que o rádio, onde a gente se via dentro; do mar que não conhecíamos; e do avião a jato, segundo ele a mais nova invenção humana. Muito maior e mais veloz que os aviões da Panair, conhecido por mim através de fotos publicadas na Revista o Cruzeiro, colecionada por tia Eulina.
O Brasil ia disputar a Copa do Mundo na Suécia. O coletor não queria deixar, por nada neste mundo, de ouvir os jogos da nossa Seleção Canarinho, tendo por isto comprado a “novidade”, então o primeiro exemplar conhecido pela Vila.
Começado o torneio, a cada vitória conquistada, nosso selecionado avançava para as próximas fases. A galera também aumentava na frente da casa do fiscal de rendas. O aparelho ficava na sala, onde a família do coletor e mais alguns apaniguados membros da elite pimenteirense, confortavelmente aconchegados, escutavam o jogo.
Os demais ouvintes, a maioria da plebe do distrito e mais algumas pessoas em trânsito na vila, ouviam em pé e amontoados à frente da casa. Muitos nem de futebol gostavam. Estavam ali maravilhados e tomados por uma enorme curiosidade em conhecer o eletrodoméstico.
Vibravam freneticamente a cada gol assinalado pelos compatriotas, enquanto adrianinos e rojões pipocavam lá nas alturas. Foi uma festa e tanto! Inesquecível acontecimento a marcar minha tenra idade.
Após o jogo final (cinco a dois para o Brasil) todos, irmanados, foram comemorar a conquista do primeiro título de Campeão Mundial do nosso escrete verde e amarelo no Bar do Souza, onde a resenha rolou solta. Os comentários giravam em torno das jogadas magistrais de Pelé, Garrincha e Cia, entusiasticamente narradas pelo locutor.
- Ouviu que golaço fez Pelé?! - falou Oriel, um dos mais entusiasmados com a recente conquista. - Que belo chapéu ele deu no zagueiro mandando a bola pra rede – completou.
- E o que você me diz dos dribles desconcertantes do endiabrado Mané?! (era assim que o locutor chamava o homem das pernas tortas) - indagou Juildes, em matéria de entusiasmo suplantando Oriel.
Embora eu não pudesse fazer parte daquela demonstração de esfuziante alegria adulta - ostensivamente demonstrada na longa patuscada estendida pelo resto do dia e varando a noite -, mesmo à parte, em matéria de júbilo, sentia-me contagiado. Era como se eu estivesse integrado àquele felizardo grupo.
Alguns anos se passaram e a engenhoca tornou-se um artigo mais acessível, de sorte que alguns “gatos pingados” pimenteirenses, para deleite, possuíam uma.
No bar do Souza que, galhardamente ostentava um modelo - pejorativamente conhecido como rabo quente, devido ao superaquecimento de suas válvulas -, acompanhávamos os jogos dos campeonatos paulista e carioca, pois as emissoras baianas não possuíam potência suficiente para serem facilmente sintonizadas.
O comerciante adorava, porque dia de jogo era dia de casa cheia e quanto mais lotada estivesse a casa, melhor seria. Era sinal, neste dia, de mais caraminguás entrando em seus bolsos. Também tinha casa cheia durante a transmissão do programa do Velho Lua, o saudoso Rei do Baião que, entre uma música e outra, intercalava picantes piadas para delírio da platéia cativa.
Meu pai, meu irmão mais velho e eu torcíamos pelo Vasco da Gama; outros dois manos, pelo Flamengo. Isto gerava sadias discussões em família na tentativa do convencer ser o cruzmaltino de São Januário melhor que o rubro-negro da Gávea. E vice-versa.
As mulheres batiam ponto, todas as noites, nas casas das amigas mais chegadas e donas do aparelho, para ouvir “Jerônimo, o Herói do Sertão”, novela de grande sucesso à época.
Em nossa casa ainda não possuíamos o cobiçado eletrodoméstico. Um belo dia, contudo, o proprietário da fazenda gerenciada por papai nos prometeu um. Quando minha mãe anunciou a promessa feita pelo senhor Tertuliano, Mi - como carinhosamente chamávamos o mano mais velho - num arroubo de contentamento bradou:
- Agora vou ouvir todo dia a resenha esportiva pra saber as notícias do meu Vascão!
- Nada de jogo, é a minha novela! - rebateu mamãe.
- É o jogo - retrucou o mano.
- É a novela e caso encerrado - falou mamãe, já bastante aborrecida com o pirralho.
- É o jogo- insistiu mais uma vez o mano.
Aperreada com aquela teimosia, mamãe pegou o relho e desferiu, sem dó nem pena, belas chicotadas no lombo do moleque que, chorando e resmungando, foi parar num canto da sala derramando copiosas lágrimas.
Mamãe até demonstrou uma pontinha de remorso pelo acontecido, mas o irremediável já estava feito. O conveniente seria então desarmar os espíritos de qualquer aborrecimento, de ambos os lados, e deixar os ânimos que andavam meio acirrados esfriar, voltando tudo à normalidade.
O mano bem tentou dar o caso por encerrado, mas ainda ressentido pela sova tomada em troca de um objeto que, para ele, não passava de uma ilusória promessa -, vivia a atazanar mamãe, insinuando que o senhor Tertuliano não cumpriria o prometido. Tal provocação lhe custou por mais algum tempo muitos beliscões e puxões de orelha.
Após um ano e poucos meses de espera finalmente a promessa do fazendeiro foi cumprida e Sua Excelência o Rádio, adentrou ruidosamente festejada pela vez primeira em nossa casa.
Assim se deu o meu primeiro contato com esta maravilha da comunicação, que até hoje nos fascina.
Conto publicado no livro: O Homem que Invultava, de minha autoria, em 2008.