Azul
O pai era daqueles que dizem que mulher não pode isso, mulher não pode aquilo. A mãe nunca tinha opinião, vivia com a cabeça baixa, os olhos no chão. Os irmãos, — quatro ao todo — uns porcos, uns rudes. Ela tinha sonhos, e muitas idéias na cabeça. Quando essas idéias saiam da cabeça, vinha a surra. Mas ela nunca chorava. Mantinha-se firme, em silêncio, e era o que mais enraivecia o pai. Com quinze anos ela deixou aquela casa para trás. Uma mochila nas costas, alguns centavos no bolso e o mesmo tanto de idéias na cabeça. O céu estava lindo aquela tarde. De um lindo que estimulava mais ainda aquele desejo dela de querer fugir. Foi pra longe, entregou-se ao mundo e, pouco a pouco, começou a entregar-se também a sorrisos cobiçosos e mãos desconhecidas.
Caía a noite e ela colocava o seu melhor vestido, vermelho, curtíssimo; escalava com graça o salto vinte, pendurava o coração no cabide e saía. Os olhares na rua recaíam sempre no bumbum, nos peitos, delineados pelo vestido muito apertado. Sempre ignoravam a tempestade em seus olhos. E ela sempre com o nariz empinado, como se fosse dona do mundo, fazendo parecer que era gostoso se oferecer daquele jeito para um estranho em um carro. A noite acabava e ela voltava para casa, a roupa amassada, a maquiagem acabada. Os olhares agora não apreciavam: repreendiam. Ela sentia-se sozinha.
Um dia, simplesmente se cansou. Havia sido “coisificada” noite após noite e ela queria se sentir gente outra vez. Queria ser livre, mas agora era como se estivesse mais presa ainda que nunca. Voltando para casa, parou no meio do caminho, ignorou os olhares que censuravam. O céu da manhã era lindo. Tão vasto quanto seu espírito, que era como se ela mesma possuísse um céu dentro de si. Naquele instante, ela teve certeza de que jamais voltaria a usar aquele vestido vermelho ou aquele salto vinte. Ela não se sentia mais sozinha. Agora ela se sentia livre, com asas para explorar seu próprio céu.