Lalinha
Lalinha era uma menina de onze anos, muito pobre, morava na favela, com sua mãe e mais dois irmãos. O pai havia morrido num acidente na pedreira em que trabalhava. As dinamites explodiram antes da hora e com elas, a vida de seu pai também. Lalinha era a mais velha de oito irmãos, mas cinco já haviam falecido pelas condições de extrema pobreza a que sempre foram submetidos. Alguns morreram ainda bebês, outros já mais crescidinhos. Lalinha já havia se acostumado com a idéia da morte, com o fato de que sua família ia, pouco a pouco se esvaindo, acabando-se...
Na verdade seu nome era Maria Eulália da Silva, mas todos a chamavam somente por Lalinha, desde sempre. No barraco em que vivia havia somente uma peça, feita de madeira, latas velhas e enferrujadas, pedaços de lonas e sacos plásticos mesmo. Lalinha dormia no chão, em cima de um acolchoado velho, comido pelas traças e cobria-se com uma colcha de chenile doada por uma vizinha. A mãe dividia uma caminha de montar com os outros dois irmãos, Julinho, de oito anos e Zequinha, de dois. Lalinha já não ia mais à escola, pois as roupas rasgadas já não estavam mais apresentáveis e também não tinha calçado nenhum, o chinelinho que usava já estava pequeno e ela o deu para Julinho e ficou sem nenhum. Banho era algo que quase não se ouvia falar por ali. Não tinham água encanada. A única opção era um riacho que corria a uns 500 metros do morro, mas nem sempre dava pra ir até lá, e quando dava, era só uma jogada de água no corpo mesmo, pra melhorar a situação. Sabão era algo muito raro por ali, Xampu então, Lalinha nem conhecia.
As refeições eram extremamente racionadas. Geralmente eles comiam um pedaço de polenta sem sal, acompanhado de outro pedaço de pão seco e um copo d’água. Quando muito, tinha uma sopa de osso, engrossada com fubá, também sem sal. Dona Zefa, sua mãe, havia ganhado um pacote de uns 10 kg de refresco em pó, daqueles de fazer picolé, sabor laranja, que havia vencido e o dono do armazém estava jogando fora. Ela pediu e ele deu. Porém não era doce, tinha que acrescentar o açúcar, mas isso era iguaria inatingível pra eles. O suco ficava mais parecendo uma água suja e azeda. A coloração era quase que transparente, pois aquele pacote tinha que durar muito. E assim seguiam-se os dias. Dona Zefa deixava Zequinha com a vizinha e mandava Lalinha e Julinho tentar ganhar algo no centro da cidade, enquanto ela perambulava em busca de algum bico, de algum trabalho, a fim de ganhar algum dinheiro.
Porém, Julinho adoeceu muito, queimava de febre e não conseguia sequer andar, quanto menos perambular a procura de esmolas. Dona Zefa não queria deixá-lo sozinho e parou de fazer os bicos que tanto ajudavam no “sustento” da casa. Julinho estava bastante debilitado, a desnutrição era visível e a imunidade não estava dando conta de combater o mal que lhe convalescia. Dona Zefa, num momento de desespero, pois já não havia nada mais para dar pros filhos comerem, saiu gritando socorro, com Julinho nos braços, deixando Lalinha sozinha com Zezinho, em prantos. O seu Joaquim, dono de uma carroça, prontificou-se a levar dona Zefa e Julinho ao posto de saúde, que ficava no morro vizinho. E assim foram, mas Julinho não conseguiu sequer chegar ao destino. Morreu ali, dentro da carroça, nos braços da mãe. A mãe, num misto de dor e alívio, só podia chorar. Um choro confuso, de quem perdera um filho, mas de quem se aliviava de uma boca pra alimentar, de quem via ali, naquele momento, menos um miserável a sofrer nesse mundo!
Seu Joaquim deu meia volta com a carroça e foi providenciar com o prefeito o enterro do Julinho. Seu Joaquim era o presidente de bairro. Era ele que intermediava os conflitos, quem levava e trazia os moradores para o posto de saúde, que ficava longe. O prefeito doou um caixão, rústico, de sobras de madeira. Mas se assemelhava a um caixote, desses de carregar frutas, mas era o melhor que pode ser feito. E pra dona Zefa, o melhor que ela jamais esperaria. E assim foi, um velório rápido, sem quase ninguém, ali mesmo no barraco que servia de lar para a família Silva. O enterro teve que ser feito logo, pois os traficantes ordenaram que fosse feito assim, já que eles iriam ocupar o cemitério para uma ação contra o morro vizinho. Velórios e enterros já faziam parte do cotidiano daquela gente. O padre veio, fez um sermão, encomendou a alma e logo se foi, pois na casa vizinha também havia uma alma precisando de extrema unção.
Dia seguinte dona Zefa já podia sair para tentar algum trabalho e Lalinha também, já rumou para o centro da cidade para a pedintina costumeira. Zequinha sempre ficava com uma vizinha, que gostava muito dele e que sempre tinha um algo a mais para dividir. Pelo menos esse não passava tanta fome. Lalinha comia pelas ruas mesmo, pois sempre ganhava um pão, ou algo assim.
Lalinha, apesar de ter somente onze anos e da falta de alimentos, apresentava uma estatura elevada em relação às meninas da idade dela. Já tinha um corpo de moça, que muitas vezes ficava exposto, pelas roupas pequenas e rasgadas que ela usava. E ela mesma já havia notado os olhares maliciosos dos homens na rua, dos mendigos que também pediam por ali. Lalinha vivia a esquivar-se das investidas que, cada vez mais vezes, eles mandavam pra cima dela. E foi num fim de tarde, desses dias cinzas em que o tempo permanece emburrado, que Lalinha foi cercada por cinco rapazes, todos menores de idade, porém bem mais fortes do que ela. Lalinha gritava, mas como nunca ninguém dava ouvido a uma mendiga, os pedidos de Socorro foram em vão. Os moleques a levaram para o banheiro masculino da praça e a estupraram, várias vezes cada um, largando-a ali, sozinha, sangrando. Ela perdeu os sentidos e somente acordou pela manhã, sendo cutucada pelo faxineiro do local, que a mandou tomar vergonha na cara e sair dali. Lalinha saiu, quase sem forças, e num meio que instinto de sobrevivência, rumou para casa.
Ao chegar lá, sua mãe a esperava, ao mesmo tempo em que estava brava pelo seu sumiço, sentia-se aliviada por ela estar viva. Lalinha, envergonhada da própria existência, escondeu da mãe o ocorrido. Disse-lhe que se deitou no coreto pra descansar e acabou adormecendo e acordando somente pela manhã. Porém seu mundo de criança inocente havia ruído para sempre. Algo muito importante havia se quebrado na sua alma, e sem chance alguma de recuperação. A alegria constante da menina, que, apesar dos pesares da vida podia ser vista de longe, simplesmente apagou-se. E nesse mar de sentimentos auto-ultrajantes, Lalinha continuou os dias. Não foi mais pedir esmola, não saiu mais de casa. Notou que suas regras não vinham mais, que estava emagrecendo e passando mal por qualquer bobeira. Imaginou estar doente e até desejou que a doença a levasse logo, assim como aconteceu com os outros irmãos. Porém, o que Lalinha tinha não era doença, mas sim uma vida, um bebê, um filho.
Dona Zefa, que havia tido oito filhos, percebeu o estado da menina e, sem nenhuma piedade, a expulsou de casa. Chamou-a de desavergonhada, de biscate brejeira e mandou que ela fosse cuidar da própria vida, que fosse tratar de alimentar mais essa boca que viria ao mundo. Lalinha saiu correndo, sem entender nada, pois jamais imaginaria que estivesse grávida. Aliás, Lalinha sequer sabia como é que se ficava grávida. Pra ela isso era consequência do casamento, mas exatamente como ocorria ela não fazia a mínima idéia. Apesar de nunca ter conversado sobre sexo com ninguém, Lalinha lembrou-se do ocorrido no banheiro da praça e deduziu que seu filho saiu dali, daquele ato tão covarde. Pois era a única explicação, já que foi o único ocorrido que havia saído de sua rotina cotidiana.
Durante os primeiros meses da gestação, Lalinha fazia bicos na casa de um, na casa de outro, ganhava um prato de comida e alguns trocados. Porém, quando a barriga começou a aparecer, lá pelo sexto mês da gestação, a menina não mais encontrava abrigo nem serviço. Tinha dias que nem comia. Mas foi numa manhã de muito frio, que Lalinha, sem esperanças nenhuma de encontrar abrigo, e ostentando uma barriga de sete meses, bateu à porta de Margarida, uma senhora, de seus quase quarenta anos, muito bonita e bem casada. Margarida, ao ver Lalinha, tão jovem e ao mesmo tempo tão sofrida, com aquele barrigão, imediatamente a pegou pela mão e levou pra dentro de casa. A menina até se assustou, pois já imaginava outra porta fechada.
Margarida era simplesmente apaixonada por mulheres grávidas, já que ela mesma nunca havia conseguido realizar tal sonho, o de ser mãe. Um simples sonho, mas que para ela já tinha se tornado impossível. Margarida ouviu toda a história da menina e, compadecida da situação, resolveu cuidar dela. Como seu marido estava viajando e só voltaria dali a um mês, ela nem, perguntou a opinião dele, apenas abrigou aquela criança que já seria mãe. Margarida levou Lalinha ao médico para ver se tudo estava bem com o bebê. Lalinha fez até ultrassom e, qual não foi a surpresa, quando o doutor a parabenizou, dizendo que seria mãe de um casal. Dois bebês? Pensou Lalinha, meio que incrédula com a situação. Dali, elas foram a uma loja e Margarida fez o enxoval dos bebês, rosa e azul, a coisa mais linda que Lalinha já tinha visto. Lalinha ficou até envergonhada, disse que não precisava tanto, mas Margarida disse que era de coração, e quando se dava um presente, tinha que ser o melhor que pudesse, nem que esse melhor seja apenas uma flor, mas tinha que ser o melhor.
Aquele mês passou rápido, o esposo chegou e, apesar da surpresa, ficou feliz por Margarida ter encontrado uma boa companhia, que preenchesse seus dias tão vazios e tristes. Lalinha já estava completando o oitavo mês de gestação quando passou muito mal. Amanheceu com febre e muitas dores. Margarida e o marido correram com ela para o hospital, para ver o que estava acontecendo, se os bebês estavam bem. Lalinha foi atendida de emergência, tudo particular, a cesariana foi feita de urgência, pois o que a acometia era uma crise seríssima de eclampsia, muito normal em gestantes tão novas como ela. Os bebês nasceram fortes, com quase três quilos cada um. Lalinha os amamentou e pediu que tirasse uma foto. Porém, a eclampsia a havia afetado seriamente, e Lalinha não resistiu. Mas antes de falecer, Lalinha escreveu um bilhete, com muita dificuldade, pois mal fora alfabetizada. Depois de escrever, Lalinha fechou os olhos para esta vida e libertou-se daquele corpo tão jovem quanto sofrido.
Quando Margarida soube do ocorrido, entrou no quarto aos prantos, num desespero sem fim, mas quando abriu o bilhete, e leu o conteúdo escrito nele, as lágrimas de tristeza, transformaram em lágrimas de profundo agradecimento.
-“Querida Margarida! Quero que fique com os meus bebês, é um presente que te dou, pois os presentes têm de ser o melhor de nós, e eles, com certeza, são o melhor de mim!”
Margarida ajoelhou-se e apenas agradeceu, pelo maior presente que alguém poderia ganhar!