RAPÉ
- Hoje em dia ninguém mais faz rapé que se aproveite e que seja digno do nome. O fumo ou está cru ou queimado demais. Chega dá um ranço na venta.
- Apois compadre, comadre Vicentina faz, e faz do bom! Experimente aqui!
Dizendo isso, Inácio tirou o corrimboque (feito com chifre de carneiro capado para não ter o bodum dos machos inteiros) do bolso algibeira, bateu na lateral com a unha grande do dedo anelar da mão direita, retirou a tampa feita de mulungu e, sem largar o precioso objeto de satisfação, estendeu a mão para que o compadre se servisse.
O coronel Izinho pegou uma pitada grossa e aspirou com força, deixando o rastro marrom nas duas narinas. Pigarreou, respirou pela boca, mastigou o vazio e deu um espirro que quase cai da cadeira.
- Que é que o senhor achou compadre?
Em meio ao acesso de espirros, sem poder falar, vermelho, sem fôlego, o coronel só pôde levantar o polegar da mão direita em sinal de total aprovação.
- A comadre Vicentina prepara, para mim, com o alecrim de caboclo torrado junto com o fumo picado e depois pisa em couro de bode capado. Fica fininho assim porque ela peneira com pano de algodão sem goma.
Ainda sofrendo os efeitos da overdose, o coronel Izinho disse que queria ir ver dona Vicentina para encomendar um bocado para ele também.
- Vamos simbora lá agorinha mesmo!
O coronel assuou o nariz no lenço listrado de marrom, cujas manchas denunciavam o vício antigo e saíram do bilhar de Tota Medrado.
- Marculino, anote essa despesa que nós vamos lá na casa de comadre Vicentina, mas voltamos já, já.
Os dois homens saíram pela rua enlameada, tentando evitar as poças d’água, conversando sobre as opções para os plantios que a cooperativa estava oferecendo naquele que prometia ser um bom inverno. Sem sombra de dúvidas, haveria uma boa safra.
Bem antes de chegarem à casa da comadre, já dava para sentir o cheiro bom do alecrim sendo torrado. Bateram palmas na frente da casa simples de porta e janela sobre a calçada esburacada.
Uma cabecinha loura apareceu por sobre a meia porta fechada.
- Carlinhos, vá chamar sua avó. Diga a ela que o coronel Izinho está aqui!
O menino desapareceu e pouco tempo depois, a dona Vicentina preencheu todo o espaço aberto na parte superior da porta. Era uma mulher vistosa, cuja beleza singela não havia sido afetada pelos anos vividos a dois passos da miséria e da fome.
- Vamos entrando – disse abrindo a parte de baixo da porta pintada de verde esmaecido pelo sol.
Os dois homens entraram e Inácio esclareceu o motivo da visita.
- O coronel Izinho veio comprar rapé. Daquele que a senhora prepara com alecrim de caboclo...
- Estou terminando de peneirar. Ainda está morno. Dê cá o corrimboque pra mode encher. Sente aí que eu volto já!
Havia, junto à mesa, um banco com a tábua do assento lisa e brilhante, pelos muitos anos de uso. Nas paredes, pedaços de reboco destacados, deixavam à mostra partes da taipa carentes de reparo. No canto, onde se juntavam a parede da frente com a lateral, um tamborete coberto de couro, (daqueles que os fumadores de cachimbo gostam de sentar para assistirem a vida passar).
Sobre a mesa, a toalha quadriculada de branco vermelho e azul, enfeitada com um jarrinho de plástico e flores de papel colorido.
Dona Vicentina entregou ao coronel, o corrimboque cheio, dizendo:
- Esse fumo é do bom. Chegou hoje, é de Arapiraca. É da safra desse ano.
O coronel tirou uma pitada generosa e fungou com força. Sem fôlego, meio vesgo, deu vários espirros e soltou um peido ruidoso e prolongado.
- Dona Vicentina, eu quero um mais forte!
Disse o coronel, quando conseguiu falar, enxugando uma lágrima com as costas da mão.
- Tá bom coronel, vou falar com Raimundo para ver se ele me arruma um fumo mais forte que esse. Volte aqui pra semana, pra experimentar. Eu vou fazer no capricho que eu quero ver o senhor se cagar todo.
Carlinhos caiu do tamborete, rebolando pelo chão, com uma crise de riso...
GLOSSÁRIO
Alecrim de caboclo - Baccharis sylvestris, planta de uso medicinal e culinário.
Bodum - Transpiração semelhante ao mau cheiro de bode não castrado.
Bolso de algibeira - Algibeira é um bolso que ficava na frente das calças masculinas, junto ao cós e servia, para colocar o relógio ou as moedas.
Capado – O mesmo que castrado, emasculado, sem testículos.
Corrimboque - Pequeno reservatório oco elaborado da extremidade do chifre de caprino ou de ovino, ou ainda confeccionado em madeira, de formato piramidal, medindo aproximadamente cinco centímetros com tampa em que é colocado rapé.
Mulungu – Árvore de madeira macia (Erythrina verna) muito utilizada em artesanato.
Advertência
Neste texto foram usados regionalismos e construções próprias do falar Pernambucano.