Anatomia do erro

Por um momento estava eu a deriva no mundo, com dois pés esquerdos, calçados por sapatos do pé direito. Tinha um braço humano; o outro, um hélitro de besouro. O silêncio dizia: é indesejável. Sem dúvida.

Estava errado o sapateado, ele disse, eu já sabia. Ainda não decidi se a consciência do erro é boa. Quem nada pode não se deforma, pouco constrangimento passa. Continua a vida como se não cometesse faltas ignorando embaraços, como uma pessoa leve, vivendo a facilidade da alegria.

Mas não sou assim. Cada falha anula toda uma coreografia, desfigura e me violenta.

Especificamente esse dia, surpreendi-me na linha da frente tímida e complicada. Algo quizilava nos meus pés, eles não pareciam concordar entre si. Percebi então que aqueles dois pés esquerdos irrompiam novamente, sempre essa imprevisibilidade. Era distrair-me, acreditar que tudo estava sob controle.

Já não era raro, constantemente eles tiranizavam meu corpo e subjugavam meu físico. Como uma dançarina com treze anos de experiência teria pés com poder deliberativo?

O pior não passara, perfuraria meu ego em poucos segundos, o julgamento alheio. O sapateado tinha sido um grito no silêncio absoluto. Todos ouviram e se prestaram à crítica. Eram, sim, pés que não afinavam entre si.

Incômodo. Experimentei o dedão raspando a parte interna do sapato. Dois dedões esquerdos dentro de sapatos de pé direito incomodavam. Eu não sabia se trocava os sapatos ou os pés.

O pensamento me escapava, será que minha unha encravou? Porém, nesse entrevero particular divisei meus braços. Estavam mudados.

Diferentes.

Eu tinha um braço humano e outro um hélitro de besouro. Não era um errado, era um membro incomum.

Sem movimentos, o hélitro não permitia grandes ações. Ele fechava o lado direito do meu corpo e o revelava quando levantado. Não era de todo desagradável, apresentava uma viva cor vermelha com ornamentação de algumas rosas brancas vistosas. Era um complemento bonito e tinha certo charme, mas todos condesciam junto ao coreógrafo: era errado novamente.

A obrigação do certo e a culpa do erro delinearam-se desde muito cedo em minha vida. A ofensa ao verdadeiro ultrapassa o abstrato, o erro me agiganta grotescamente. Senti-me pouco a pouco aumentando, como uma Abaporu. Pressenti a vertigem, à beira de mim o abismo.

Sofri lobotomia aguda e temporária. Nada flutuava dentro da minha caixa craniana, era um vazio sem impressões. Expiei de pé. Não senti a movimentação do tempo, ele derretia-se em si e retornava ao início derradeiro, segundos de estranhamento ou uma vida toda sem julgamentos.

Sinto que talvez no processo de realocação dos meus neurônios passei por reinos ímpares, jantei com Afrodite e me doei a Dionísio, fiz juras ébrias aos deuses já esquecidos. Dizem que quando da suspensão do tempo todo o universo passa por nossas entranhas. Trespassada por touros e estrelas, absorvendo luzes fugazes me senti fisgar novamente pelo trivial rearranjo do intelecto.

Subitamente voltei.

Penso que de tantas coisas não vistas que redundaram na Terra e tantas surpresas realistas, que o dançar paira além de mim, sente e sofre com todo o universo. O acontecer tão valorizado, figura como um verbo intransitivo num multiverso movediço.

Halina
Enviado por Halina em 05/05/2011
Reeditado em 05/05/2011
Código do texto: T2952006