MIRANDA
MIRANDA
Sentiu um peso grande nas costas. Mas era sua consciência que pesava sobremaneira em cima de seu passado sombrio do qual ele já nem lembrava mais. Miranda mal se lembrava do nome quando chegou nesta rua. Sempre foi um homem estranho, quase nunca cumprimentava os vizinhos. Conversar então, era nunca. Parece que de quando em vez sua consciência voltava ao normal e ele ficava ainda mais sombrio e com o rosto muito carregado. Nestes dias a gente tinha até medo dele. E foi justamente num destes dias que o estranhei mais. Ele estava muito carregado, encurvado por demais, até parecia que sua consciência doía com o peso das lembranças que acreditávamos apagadas de sua memória. Ele passou por mim e deu um sorriso.
_ Bom dia Luís.
Não consegui responder ao senhor Miranda. Não sei se de susto ou de surpresa, só sei que apertei o passo e fui direto pra casa. Não consegui dormir direito. Minha consciência pesara a noite toda. E se Miranda quisesse me contar alguma coisa? Sabe Deus o que se passa por detrás daqueles muros altíssimos onde se encontra sua casa, que por sinal nada tem de normal. Uma casa antiga, com grandes janelas de madeira carunchadas e apagadas pelo tempo, que nunca se vêem abertas. Fiquei imaginando que aquele homem poderia estar precisando de mim. Mas depois me virava pro outro lado e me desfazia no sono que insistia. Afinal, eu tinha apenas dez anos, e um homem já idoso como senhor Miranda, jamais iria precisar de mim. Que bobagem a minha! Devia ser apenas um homem solitário e triste, talvez com algum desgosto na vida. Um pobre homem.
Naquele dia o sol nasceu, mas o inverno estava começando e com ele, um frio terrível nos acordou meio com preguiça. Mas devia eu ir à escola. Como todos os dias, passava em frente à casa do senhor Miranda, e naquele dia parei um pouco para admirar aquela construção quase centenária. Reparei nos detalhes da casa, no telhado e na madeira das janelas sempre fechadas. Tudo parecia intocado há décadas. Nenhuma pintura, nenhum reboque em alguns tijolos que já estavam à vista. A casa devia ter umas vinte janelas ou mais, porque nunca a vimos nos fundos, só víamos a fachada um pouco afastada da rua e uma chaminé ao fundo que soltava uma fumaça cinzenta, a utilização do fogão à lenha. Fiquei imaginando mil coisas, quando de repente uma das janelas se abre e aparece a figura do senhor Miranda, ainda meio sonolento olhando pela rua. Fiquei atônito. Mal consegui parar de pé. A esta altura ele devia estar pensando no que eu fazia ali, parado e olhando demasiadamente para sua casa. Ele me olhou de cima a baixo e o frio que sentia quando acordei naquela primeira manhã de inverno nada significava diante do frio que correu por todo o meu corpo com o olhar do senhor Miranda para mim. Àquele tempo a gente ainda ia para a escola com calças curtas e ele se fixou em minhas pernas desprotegidas contra o vento. E disse ainda meio rouco:
__ Ta sentindo frio não? Vai adoecer!
Só também. Fechou a janela e pronto. Provavelmente eu ainda fiquei ali parado uns dois minutos, imóvel como uma estátua, assustado ainda com a aparição do senhor Miranda. Ele era um homem de pouquíssimas palavras, isto é, quando as pronunciava. Talvez seja isso o fato de o estranharmos tanto. Nunca o víamos na casa de ninguém, nunca o víamos fazendo compras, nunca o víamos com uma pessoa. Ficava imaginando: teria ele filhos ou uma esposa? Mas onde? Naquela casa ele já morava por três anos. Chegou num dia de sol forte, com as poucas coisas que trazia num caminhão aberto e com dois homens auxiliando nos trabalhos. Ele trancou a porta, o caminhão se foi, e minha mãe dizia, ele ficou uma semana sem sair de casa. Também foi minha mãe que contou que naquela casa morava uma senhora bem velhinha com sua filha, e que havia falecido. A filha desconsolada mudara-se para a capital e vendeu a casa por um preço baixo. Naquele quintal, dizia mamãe, existem muitas frutas. Mas ninguém mais ousou pedir alguma coisa que viesse daquele quintal.
Chegando da escola, passei do outro lado da rua correndo, e nem olhei para a casa do senhor Miranda, pois meu coração parecia que ia saltar pra fora de tanto medo. Isso teria que acabar, porque minha casa ficava muito próxima da casa dele. Havia uma outra casa, que estava vazia e que nos separava daquele senhor tão estranho. Criei coragem e contei pra mamãe os meus medos.
_ Ora Luiz, que bobagem, o senhor Miranda é um homem bom. Só que ele gosta de ficar sozinho em casa, nada mais que isso.
Mas não me convencia. Nem a mim, nem a todos os outros garotos que brincam naquela rua. Todos têm medo daquele homem. Nem saímos mais durante a noite, pois um vizinho nosso afirma que viu o senhor Miranda abrir a janela à meia-noite e gritar pelo nome de uma mulher. No dia que me contaram essa história eu tremi todo e prometi a mim mesmo que nunca mais sairia à noite. Tinha pavor só de ficar na calçada de minha casa depois que escurecia e olhar para aquela casa. Não havia energia elétrica lá, e se via às vezes uma luz fraca de candeeiro que misturada ao silêncio daquele lugar causava arrepios no corpo todo.
Era já um outro dia, ainda mais frio. Saí a tarde para ir comprar farinha de trigo a pedido de mamãe. Nossa casa era a última da rua, não tinha como não passar frente à casa do senhor Miranda. Fui rapidinho, e na volta, dei uma olhadinha. Ele estava saindo. O que fazer? Não podia correr, ele iria me estranhar. Não tinha o que fazer. Ele subia a rua com seu rosto carregado e encurvado pelo tempo e vinha em minha direção. Pensei em gritar por mamãe, mas não ia adiantar. Pensei em correr, mas para onde? Não podia voltar atrás porque minha mãe me esperava. Pensei comigo mesmo: bom, na rua ele não há de me fazer nada. Qualquer coisa eu grito, afinal estava perto de casa. Levantei minha cabeça e fiz cara de quem não está com medo. Ao chegar perto dele, ele me pediu para esperar um pouco. E agora? O que será que ele quer comigo? Tomei coragem e disse:
__ Pois não senhor Miranda.
Ele abriu uma sacola que trazia pendurada aos ombros. Pensei em correr naquele momento. O que esse homem tiraria dali? Mas suportei, pois afinal minha curiosidade estava aguçada. Eu queria descobrir os mistérios do Miranda. Ele tirou de dentro da sacola um pouco de dinheiro e pediu que eu comprasse dois pães para ele. Eu disse que precisava entregar a farinha para minha mãe, mas que depois buscava os pães que ele me havia pedido. Quando já estava com os pães na mão me deparei com a casa do senhor Miranda. Meu Deus era agora que eu ia penetrar aquele território sombrio. Exitei um pouco, mas fui. Chamei pelo senhor Miranda e ele me abriu a porta para entrar e me convidou a tomar um chá com ele. Eu entrei, embora estivesse com muito medo, pois mamãe não sabia onde eu estava. A casa do senhor Miranda por dentro não era muito estranha. Um sofá velho na sala e um monte de quartos vazios. Havia um quarto onde ele foi me dizendo que era onde passava as suas noites. Lá também quase não havia nada. Apenas uma cama e uma grande caixa onde depositava suas roupas. Um quadro na parede chamava a atenção. Era lindo, grande e não combinava em nada com aquele lugar. Parecia de uma casa de gente rica. Era o rosto de uma mulher que aparentava uns trinta anos. Perguntei quem era. Senhor Miranda mudou o tom de voz: não toque neste quadro. Falou meio alto quando eu já ia colocar a mão nele. Fiquei muito assustado e tive vontade de correr. Logo fui embora, mas fiquei muito curioso para saber o mistério daquele quadro.
Duas semanas se passaram e novamente o senhor Miranda me havia pedido para comprar pães para ele. Eu já não me assustava tanto, mas havia contado para os meninos da rua que eu havia entrado naquela casa e como fui corajoso. Certamente exagerei bastante na história e na minha imaginação. Mas entrei. Ele me levou novamente no quarto e mandou que eu olhasse o quadro. Estranhei sua atitude, mas fui corajoso. Ele me perguntou se eu a achava bonita, ao que prontamente respondi que sim. Pois é, disse ele, foi minha esposa. Faleceu já faz vinte anos.
A partir daí passei a entender um pouco melhor a triste história do senhor Miranda. Ele me mostrou várias fotografias do tempo em que era militar. Senhor Miranda era tenente coronel e estava aposentado. Perguntei porque morava ali e se não tinha filhos para cuidar dele. Ele me disse que tinha um filho que o odiava. Fiquei sem entender, mas não tive coragem para perguntar o por quê. Ele retirou do fundo da caixa de roupas um baú. O baú fedia a mofo e era muito velho. Confesso que fiquei congelado ao ver aquela caixa tão antiga, trancada com um cadeado velho. Ele o abriu e me perguntou se seu poderia ver um segredo dele. Eu disse que sim, mas ele afirmou que era algo assustador. Em trinta segundos eu tomei a decisão de queria ver. Mas nesses trinta segundos o mundo todo e todo aquele medo que eu sentia foi repassando pelo corpo. Mas estava ficando homem e tinha que ser corajoso. Pelo menos era o que dizia meu pai. Tudo bem, senhor Miranda, pode mostrar.
O que vi foi horrível. Confesso que não sei como eu pude suportar aquela visão. Devo ter ficado meses assombrado com tudo aquilo. Creio que não tinha eu maturidade para tanto, mas também entendo hoje que o coronel Miranda tinha uma dor que não conseguia compartilhar com ninguém. Ao abrir aquele baú e segurar algo embrulhado num pano ele ainda me perguntou de novo se eu gostaria de ver. Diante de minha afirmação positiva desenrolou aquele pano e de lá saiu uma faca. Uma dessas comuns, de cozinha. Estava suja de sangue, mas um sangue muito preto por causa do tempo. Eu nem acreditava no que via. Imaginava que ele iria me furar, me cortar em pedacinhos e me colocar num caldeirão como faziam as bruxas das nossas estórias infantis. Mas ele a colocou na cama sem dizer nada. Depois, o que estava por vir era ainda muito pior: um vestido todo sujo de sangue, ao qual, ao me mostrar com lágrimas dizia ser de sua esposa. Não precisou explicar que aquela faca teria tirado a vida da tão linda senhora do quadro. E tinha ainda um feixe de cabelos, louros e lisos, bem conservados apesar dos vinte anos, que era de Gláucia, a esposa do senhor Miranda. Eu nem precisava sentir medo, porque não conseguiria correr mesmo, tão apavorado estava eu. Mas ele me pegou pelo braço e me sentou em sua cama e chorava copiosamente. Tive pena. Não sabia o que imaginar. Quem teria matado tal mulher? E por quê? Fui saber de tudo. Aquele homem estava com a vida acabada. Vivia seus últimos dias naquela casa como que a pagar por seus pecados. Ele havia assassinado a esposa num súbito instante de ódio quando esta estava com outro homem em sua cama. Eram duas, e não uma morte que o coronel Miranda carregava nas costas. Pobre homem. E todos tinham medo dele por causa do silêncio e por causa do seu jeito estranho. Fui embora sem medo aquele dia. Simplesmente assustado, mas com pena daquele senhor já de idade.
17 de agosto de 1947. Está chovendo muito. Faz seis anos e já tenho dezesseis. Chegou a pouco o filho do senhor Miranda. Júlio entrou chorando naquela casa que ainda não fora reformada. Daqui a duas horas, senhor Miranda estará sendo sepultado.