O NIKE VERMELHO

Aí mano, vamo trocá uma idéia !. Disse Neguinho ao Baianinho. Neguinho, apesar do apelido, não tinha nada de pequeno. Era um negro forte, de mais ou menos uns 80 kilos, 1,90 de altura. Tinha barba e bigodinho ralos que lhe davam um ar de quem não tinha se lavado direito. Gingava o corpo ao andar, demonstrando malandragem, que na verdade não tinha. Nasceu na periferia da cidade, aprendendo ao longo de seus vinte e poucos anos, a malandragem do lugar, mas não exerceu nenhuma delas. Desde cedo trabalhava e o que ganhava, mal dava para comprar alguma coisa para si. O que ganhava era utilizado para o auxílio de seus oito irmãos mais novos. O pai tinha morrido num acidente, atropelado em uma tarde ao sair de um bar, onde tinha abusado da cachaça, hábito que tinha há anos. Baianinho era seu amigo de infância e ganhara esse apelido por ter nascido no interior da Bahia. Ainda criança veio para a Capital juntamente com os pais e mais cinco irmãos. Atraído pela propaganda de que em São Paulo teria uma vida melhor, com emprego e fartura, o pai resolve vir. Arrumaram um barraco de madeira na mesma favela em que Neguinho morava. A vida era dura, o lugar não era dos melhores, mas era ali que construíam a vida, juntamente com pessoas da mesma classe, que tinham o mesmo objetivo, trabalhar para comer, era o que dava pra fazer. Baianinho, ao contrário de Neguinho, era franzino, baixinho e não pesava mais que cinqüenta kilos. Era moreno claro, com o cabelo pixaim, pela mistura de etnias, pois o pai era negro e a mãe bem clara. Ao se aproximar Baianinho disse, qual é idéia mano ?. Neguinho respondeu, é o seguinte mano, to cansado dessa vida, num guento mais trabalhar e ganhar essa merreca que ganho, to a fim de fazer uma correria. Baianinho, ouvindo aquilo ficou perplexo, dizendo para Neguinho que de correria a cadeia tava cheia, e se ele tinha esquecido dos malucos da favela que tinham sido presos ao fazerem sua correria. Mano, ce ta louco. Não se esqueça do Batata, do Binho, e do Tadeu que foram na onda do Betinho e caíram naquela fita do posto de gasolina. Meu, ce não lembra não ? Além dos caras terem sido arrebentados pela polícia ainda pegaram seis anos de cadeia e tão se fudendo no CDP. A família vai toda semana levar o jumbo pra eles e são tratados como bandidos também. Vê se esquece isso mano. Trabalhar é foda, mas ainda é melhor do que segurar BO pro resto da vida. O Batata ta lá, com a mina grávida. O Binho, o pai morreu de desgosto e nem pôde ver o pai ser enterrado. O Tadeu, só tem a mãe aqui fora, e a coitada trabalha de doméstica e ta gastando tudo o que tem com o jumbo da semana. Para meu, isso tudo é foda. Neguinho parecia que não ouvia o que Baianinho falava. Que nada truta, to de saco cheio dessa vida. Vou fazer umas fita aí. Vou comprar uns panos mano. Vou no Shopping comprar uns baguio, tênis e os caraio. O que eu ganho no trabalho não ta dando nem pra comer. Vou me jogar truta, vamo comigo.....deixa de ser trouxa, vamo junto ! Mano, ce sabe que não é malandro, disse Baianinho. Ce num guenta, mano. A hora que os home te pegá você gela truta, você não é da correria! Você num vai agüenta, mas se você acha que sim, é a tua cara, vai lá, se joga. Baianinho saiu de perto meio decepcionado de ouvir aquilo, afinal Neguinho era seu amigo de infância e sabia bem o que poderia acontecer. Parece que já podia ver. Neguinho preso, sua mãe chorando de desgosto. Os irmãos mais novos passando mais necessidade, se é que seria possível. Olhou para trás e viu Neguinho entrar no beco da favela, em direção à biqueira. Sabia muito bem o que poderia acontecer com o amigo. Neguinho chegou em frente aquele barraco no meio de tanto outros, mas aquele era diferente. Bateu na porta e do outro lado alguém pergunta. Quem é?. Sou eu o Neguinho, o Xandão ta aí?. Ao ser aberta a porta surge a figura de Xandão. Um branquelo alto, de olhos verdes, bem magro com várias tatuagens espalhadas pelo corpo e uma especial que era vista no antebraço direito. Essa ele dizia que havia sido feita na cadeia. Era uma estrela de cinco pontas, uma para cada desafeto mandado pros quintosdosinfernos, contava. E aí Brow, o negócio é o seguinte, preciso de um cano pra fazer uma fita. Quéqueisso Neguinho o que ta pegando, você não é disso, disse Xandão. Vou me jogar mano, estou descabelado e preciso me levantar, explicou. Xandão não quis saber muito da estória. Mano, é a tua cara, mas você sabe como funciona os barato aqui. Quarenta por cento do que levar e sem chapéu mano, senão fica embaçado. Se perder o cano paga dois. Se rodar, já era, mas quando sair da cadeia você paga. Beleza mano, respondeu Neguinho, sei como é o barato. Xandão foi até o fundo do barraco e debaixo de uma cama velha revirou umas madeiras e retirou uma caixa com várias armas, no meio delas uma trezentos e oitenta preta. Essa aqui é o bicho, tem treze balas no baguio. Se precisar de mais procure o ZéCoxa, ele te vende mais, diz que você é meu truta que ele libera pra pagar depois. Neguinho meteu a trezentos e oitenta na cinta, jogou o camisão pra fora da calça e saiu dali. Andava de cabeça erguida, sentindo uma sensação que nunca tinha experimentado. Sentia-se mais alto, mais forte. Sentia-se o dono do mundo. Aquela arma na cintura lhe dava uma segurança que nunca teve. Tinha pensado a semana toda na fita que iria resolver sua vida. Aquela loja que havia sido inaugurada ia resolver tudo. Entrara na loja no dia da inauguração. Tinha música na porta, tinha balões, tinha algodão doce e pipoca para atrair a freguesia. Entrou e foi olhar os produtos. Era uma loja de departamentos e tinha de tudo. Aparelhos de som, roupas, relógios, aparelhos celulares, câmeras digitais, tênis dos mais variados, daqueles que os boys usam no Shopping. Nossa, as minas iam ficar loucas por mim se tivesse um desses, pensou. Perguntou o preço de um tênis Nike para o vendedor e percebeu que o que custava era o salário de um mês. Era um Nike branco, mas muito branco que doía as vistas. Saiu de lá cabisbaixo. O vendedor tinha dito que poderia ser feito no carnê, bastava a carteira de trabalho com registro que estava tudo certo. Neguinho não era registrado no trabalho. Aliás fazia bicos em construções. Além de ganhar pouco tinha que ajudar seus irmãos. Mas isso pra ele já era passado. Aquele cano na cinta ia resolver tudo. Encontrou no caminho o Pezão fumando um baseado. Parou para cumprimentá-lo e aproveitou para dar um tapa no baguio. Pegou a bagana e deu uma puxada longa. Olhou para o céu e o brilho mudou. A coragem aumentou. Falsamente se sentia mais decidido para fazer sua fita. Pezão ao pegar de volta sua bagana perguntou o que tava pegando e Neguinho respondeu que ia resolver uns barato, não dando muita atenção para ele. Saiu da favela, atravessou a avenida e foi direto em direção ao local que já sabia. Aquele lugar que iria resolver sua vida. Caminhou por uns quinze minutos até chegar em frente aquela loja. Observou o lugar e pode ver que estava tudo conforme ele havia imaginado. Não tinha segurança algum por perto. Era só entrar, seguir até o caixa. Sacaria sua trezentos e oitenta e anunciaria o assalto. A moça do caixa lhe entregaria o dinheiro. Sairia dalí com os bolsos cheios. Pelo menos uns 5 paus, imaginava. Daria para resolver seus problemas. Compraria algumas coisas para si. Compraria roupas para os irmãos pois estava cansado de vê-los com camisetas velhas e rasgadas. Estava cansado de vê-los descalços andando no chão imundo da favela. Daria um fogão novo pra mãe. Faria a feira do domingo. Ah, a feira de domingo. Sairia de lá com pelo menos umas quatro sacolas cheias de frutas e verduras. Mesmo aquelas que não estava acostumado a comer. Comeria juntamente com seus irmãos e a mãe um monte de maçãs, peras, mamão. Compraria para o almoço uma meia dúzia de coca cola. Estava com o saco cheio de tomar tubaína e Kisuco, isso em dia de pagamento. Balançou a cabeça tentando parar de pensar nisso e entrou na loja. Caminhou até o caixa e parou diante dele. Olhou para os lados já levantando o camisão, sacando sua trezentos e oitenta. Pode ver que a moça do caixa mudou de cor. Deu um suspiro e um passo para trás colocando a mão no peito, como quem está sentindo dor. O dinheiro entregue. Esqueceu-se até de dizer que era um assalto, mas isso não tinha importância, ela sabia bem o que estava acontecendo. Na calçada, em frente a loja para uma viatura Tático Móvel. Já tinham visto o Neguinho entrar na loja. Um dos policiais olhou e comentou que aquele preto mal vestido e com ginga de malando não estava com boas intenções. Deram a volta e observaram. Policiais descendo da viatura e o Neguinho já com todo o dinheiro na mão entregue pela moça do caixa. Estava quase tudo pronto. O assalto. O dinheiro entregue. Estava guardando as notas mal arrumadas nos bolsos com uma mão, e na outra a trezentos e oitenta. Os policiais não perguntaram nada. Não fizeram nenhum comentário um com o outro. Armas nas mãos, vários disparos. Neguinho curvando-se sobre si. Tenta ainda, em vão correr e tropeça em uma pilha de tênis. Era uma pilha com promoção de tênis Nike de vários modelos. Neguinho esparrama-se sobre ela. Cai no meio dos tênis com mais de dez tiros certeiros. Sente por alguns segundos o cheiro de pólvora no ar misturado com o cheiro de tênis novo. Caiu com a cara dentro de uma caixa de tênis que se abrira. Número quarenta e dois. Nike ultimo modelo e exatamente aquele que tinha perguntado o preço no dia da inauguração da loja. Era branco, todinho branco, com exceção das manchas vermelhas que acabara de ganhar.