O DILEMA DO VIVER
O DILEMA DO VIVER
Meu nome??!! Quem sou eu??!! Não importa. Não quero revelá-lo e, nem mesmo escrever uma biografia. Não por vergonha de minha história, mas por vergonha da sociedade em que vivo. Durante toda minha vida vi a corrupção, a violência e o descaso contra o ser humano, especialmente contra os menos favorecidos. Hoje, isso é algo muito nítido para mim, todavia, quando tinha por volta de 26 anos de idade não enxergava de maneira nenhuma essa organização desumana, embora passasse muitas dificuldades. Contudo, houve um fato que aconteceu em minha vida que evidenciou isso, e a partir daquele momento vi o mundo verdadeiramente como ele é.
Tudo aconteceu por volta de 1978, em um patrimônio de Colatina denominado 15 de outubro onde morei com meu marido e mais dois filhos. Pouco tempo depois viria outro que completaria os três que tenho. Era um lugar muito simples, a casa onde morávamos, de favor, também era simples não tinha energia elétrica e nem água encanada. Não recebia salário, meu marido estava desempregado e fazia alguns serviços de vez em quanto. Com isso, comprávamos o leite das crianças e guardávamos o restante para fazer uma comprinha. Quase não tinha roupa para vestir, pois as condições não permitiam comprar. Às vezes, alguns vizinhos de melhor poder aquisitivo se compadeciam e doava algumas para mim e para meus filhos. Todavia, se para mim esse tipo de roupa era difícil, quanto mais às roupas íntimas, mas usava aquilo que tinha e podia. Aliás, me lembro muito bem de uma das poucas calcinhas que tinha. Era cor-de-rosa com detalhes amarelos. Gostava tanto de usá-la, pois não havia ganhado, nem achado, mas comprado na cidade. E pelas nossas condições, era muito difícil ir a cidade comprar uma alguma coisa, especialmente uma peça íntima, por isso representava muito para mim. Representava meus sonhos impossíveis de acontecer.
Falando nisso, certo dia, lavava roupas no tanque, carregando água pra lá e pra cá feito louca. Entre as roupas estava a calcinha cor-de-rosa. Ao terminar a lavagem, estendi todas as roupas na cerca de arame farpado que ficava do lado de trás do casebre. Essa cerca fazia divisa entre ele e uma fazenda. Deixei as roupas secando e fui cuidar das crianças e dos outros afazeres. Instantes depois, quando as crianças estavam brincando atrás do casebre, eu observava não só a elas, mas a também uma manada de bois que passava devagar muito próximo a cerca. De repente, um deles fez algo que jamais poderia imaginar. Era um boi da raça zebu. Chegou bem perto da cerca e esfregou os chifres nela. O inesperado: minha calcinha cor-de-rosa acomodou-se ao chifres do animal, aberta como se alguém a tivesse vestido neles. Corri num lance de desespero para tentar fazer alguma coisa, mas não havia nada o que pudesse ser feito. Aquela cena violenta e irracional que tirou de mim algo nunca saiu de minha mente. Fiquei indignada, pensativa por ter perdido algo de que gostava e que representava para mim. Por semanas vi o animal carregando minha calcinha cor-de-rosa em seus chifres, até que ela toda se rasgasse.
Tempos depois, pensei ter esquecido daquilo, então, conversando com meu marido, ele me contou que trabalhou irrigando uma horta para um produtor da região e, ao terminar, o homem pagou a metade a ele e disse que pagaria o restante depois. Nunca o pagou. Quando me disse isso, imediatamente a cena, a figura daquele animal truculento se refez em minha mente me trazendo a indignação e me tirando o sossego. Meses depois, o pouco dinheiro que tínhamos no banco desvalorizou completamente devido à mudança da moeda, e mais uma vez o sentimento de indignação tomou conta de mim, como se o grande animal mais uma vez tivesse me subtraído algo. E foi assim até hoje. O tempo passou, mas tais sentimentos sempre se fizeram presentes. Todavia, isso foi para mim o sinal de que algo havia mudado em mim, estava mais amadurecida. Podia ver o que antes para mim era natural. Achava que a vida era assim mesmo, mas não era. O sistema em que vivemos é organizado de maneira injusta e nos causa sofrimentos. Foi preciso um animal irracional levar meu sonho cor-de-rosa para que eu acordasse dele, e pudesse ver a realidade desbotada da vida, em que sempre os animais (ir)racionais subtraem de nós alguma coisa de que gostamos ou de que precisamos. Sim, são os animais (ir)racionais, no plural mesmo. São muitos contra quem nos indignamos. Estão em toda parte praticando sua violência contra nós, os menos favorecidos. Somos indefesos em um mundo marcado pela corrupção. Direitos iguais!! Isso é uma verdadeira balela!! Nossos territórios são muito bem demarcados pela cerca de arame farpado. Lá do outros lado, os animais (ir)racionais são considerados maioria e nós, deste lado, a minoria, embora eu penso que seja o contrário, pois a concentração de renda está nas mãos de uma minoria e grande parte dos brasileiros vivem com menos de dois reais por dia. Não temos acesso ao outro lado da cerca, embora, somos enganados, quando dizem que um dia chegaremos lá. Mas os animais (ir)racionais têm acesso ao lado da cerca em que estamos. Isso acontece exatamente quando necessitamos usá-la, então, eles vêm num momento de descuido e se aproveitam para nos surpreender. Na verdade, somos muito descuidados, somos simples demais, não temos a mesma malícia e astúcia deles. A prova disso é como subtraem de nós o tempo todo e, eles mesmos, nos fazem rir de nossas próprias desgraças quando assistirmos os programas humorísticos nas emissoras de TV, principalmente em uma que insisto em chamar de rede Bôbo. Nela, quem não se lembra do personagem do Chico Anísio, deputado Justo Veríssimo dizendo: “Eu quero que o pobre se exploda”; “Pobre não nasce, pobre dá!!”. Quem nunca deu gargalhadas disso? Como somos ingênuos!! Somos controlados o tempo todo, vigiados e enganados com falsas promessas. De que adianta eu dizer para você: fique de olhos abertos! Os meus estavam bem abertos quando fui surpreendida pelo ato irracional daquele animal. De lá para cá, nunca deixei de ser surpreendida. Concluo que não há nada que possamos fazer. Acho que no máximo ter a consciência disso. Já ajuda!! Olho para o passado, vasculho o presente, procurando fazer uma equação cujo resultado é sempre o mesmo: um futuro imperfeito e incerto... Isso é embaraçoso... Não há rumo... Não há saída...