A Lavadeira Esotérica

Ela lavava as roupas coletivas nas águas do inconsciente.

Sua verdadeira magia era subsistir - um milagre da bruxa moderna.

Algumas peças de roupa trazem poeiras das estradas distantes que, desgastadas demais, desfazem-se à esfregação.

Antes perder as roupas - pensa a lavadeira - para ganhar uma vida.

Outras roupas trazem sangue das batalhas que trazem vida.

Existem ainda aquelas roupas que chegam intactas, conservando as dobras em goma, como se nunca tivessem sido usadas. São daquelas pessoas imaculadas pelo desejo, que nunca se expuseram ao perigo, derrotadas pelo medo, pouparam-se de viver. Coisas da vida.

Os dias de chuva são de quietude. As roupas acumulam-se, de molho, e a lavadeira contempla o encontro das águas celestes com as encaichoeiradas, assim avolumando o rio da vida. Recostada nas pedras, espreita os sons que quando ensurdecedores silenciam o ambiente circundante.

Ela sabe que terá muito trabalho, mas não se apressa. É sua vida, sem estranheza ou tristeza.

Os dias de sol trazem intensidade e suor. Banhando-se despida, lava a roupa da humanidade, vivendo o que as fez sujar, resgatando a pureza primordial.

As roupas imundas, por culpa ou remorso, por injúria ou desonra ali nunca chegaram. Roupa suja se lava em casa.

Após o trabalho, ela costuma parar, aquietando corpo e mente no ritmo repousante que lhe dá esta vida.

Por uma estrada ribeirinha, aproxima-se um mago, que na verdade era apenas um homem sério, com uma capa negra, bem suja, e uma espada bem limpa.

- Você está meditando, mulher?

Pronunciou esta pergunta com tanto rigor e mesura que a lavadeira, mesmo sem entender, apressou-se em negar que fizesse qualquer coisa:

- Eu não estou fazendo nada não, senhor.

Ele pareceu irritado ao replicar:

- Já sei! Você fez voto, retiro de solidão, doutrina secreta de alguma comunidade, religião ou seita desconhecida.

Ele parecia saber tudo, o que estarrecia a lavadeira, continuou, tocando-lhe o ombro:

- Mulher tomou algum chá, fumou ou mascou alguma erva?

- Moço, eu não fiz nada - balbuciou a amedrontada mulher.

- Agora sei, adepta da não-ação, taoísta, budista, zembudista, xamanista, etc. não me importa mesmo. Venho trazer-lhe este texto: páginas raríssimas que encontrei num templo abandonado em meu caminho de São Donatelo. Aqui encontrarás tudo o que buscas. Poderás orar, mesmo em seu tempo de trabalho, unindo cada AGORA ao todo universal e, assim, fazendo contato permanente com Deus e o Eu interior ou superior...

A lavadeira pensou em agradecer, ou desculpar-se, ou mesmo... Ela não sabia bem o que fazer:

- Eu lhe agradeço, mas eu não sei porquê deveria... Eu...

O Mago olhou-a em silêncio, cada vez mais sério, disse mais algumas coisas, que nem eu pude compreender, sobre a ignorância, falta do conhecimento, engano, etc. Foi embora.

Ele seguiu seu caminho até o cerimonial, que o aguardava, em que seria dito que ele era um Mago com o Dom da Fala.

Entre duas grandes pedras, formava-se uma pequena caverna que, com palhas e folhas, abrigava as noites da lavadeira esotérica.

Como que dormindo, ela tinha sonhos com figuras espectrais de várias tonalidades verdes, cujo brilho deslocava-se por filamentos luminosos, que a cada noite a levavam para mais longe do que lhe era conhecido.

Ao acordar, sempre mirava as redondezas com mais alegria e, ao seu trabalho, se entregava com mais energia.

Nesse dia amanheceu um dia quieto, desses em que os pássaros estão recolhidos a seus ninhos, as árvores chacoalham, não com o vento, pois esse não há, mas como um balbuciar solitário.

Parece uma espera da vida por si mesma, sozinha, a lavadeira espreita pelo que lhe dará pulso. O sol encobre-se a todo o momento, como num jogo de iluminação em cena de suspense. Adivinhando, os sapos coaxam a bateria de entrada e silenciam, parecem parar de respirar, para que o dia branco ganhe mais silêncio ainda.

Tudo sucedendo a si mesmo será assim na vida?

Ao acaso e de propósito, de propósito e ao acaso, dessa forma é que surge um bando de lavadeiras, subindo a cachoeira com enormes tachos com roupas e sabões. Sobem cantarolando uma música tão diferente em harmonia e letra, que não consegui identificar que idioma era aquele.

Começam o enxágüe. Desceram as trouxas...

Por acaso ou de propósito, arma-se um palco aparentemente vazio de si mesmo.

A lavadeira espera sem esperar.

Surge um cantarolar bonito e diverso do que eu já escutara. Em harmonia, principalmente, pois o idioma era totalmente estranho como o desenrolar desse dia.

Referem-se aos tecidos e às manchas de sexo, com pêlos e cabelos, com rugas de suor e movimento de uma paixão desperta. Depois, falam dos lençóis de casal, nunca profanados, que para não sujarem seus cetins, dormem com seus desejos. Corações adormecidos deixaram nódoas também, mas de espuma e sangue, por edema agudo de pulmão, hipertensão ou enfarto do coração.

Papo de lavadeira: a verdade lavada e passada adiante.

Após lavarem a roupa suja contando sobre a vida, iniciam um ritual de molhar seus cabelos, os friccionarem com o óleo das folhas grossas e grandes, da ponta até a raiz umas das outras.

Parecia um grande balé musicado ao vento livre, numa mágica leveza e brilho, de pingos luminosos e torções de corpo para frente e para os lados, como em um agradecimento simbólico da perfeição adquirida. Depois, recostam-se de costas umas com as outras, até seus cabelos secarem, então, os enxáguam com força.

As roupas passavam por este mesmo processo do quaradouro ao enxágüe. Depois eram embandeiradas em longos e altos varais. Ficaram penduradas expostas até estarem secas.

Havia algo muito carinhoso durante esses encontros das lavadeiras. É difícil sabermos observar, sem julgá-los ou compará-los ao desencontro do mundo à que estamos acostumados a presenciar como real.

Os toques, os esbarros, os sorrisos, o respeito, a confraternização, a solidariedade, as mesmas buscas, as mesmas idas e vindas, o mesmo meio simples de haver vida.

Era tudo tão bem vivido há sua hora, que não sentiam saudades umas das outras. Se algumas delas tinham ou não uma relação afetiva, ninguém perguntava sobre isso. Tudo parecia tão bem resolvido.

Ao contrário do que é hábito em nossa forma comum de relacionamento, com tendência a pressentir frustrações complexas e omissão de desejos. Não, nada parecido ao menos, havia ali. Estavam sempre descontraídas, sorrindo muito e quietas, ao relaxarem sem sombra de tristeza ou nostalgia. Não perderam paraíso algum. Não buscavam resposta nenhuma, nada perderam em tudo o que viveram.

A maioria delas residia a quilômetros de distância uma das outras. Com raras exceções, residiam sozinhas. Mesmo quando em par numa mesma casa, havia muito de solidão. Isso é que me atiçou a curiosidade rumo ao caminho do conhecimento de vida da lavadeira esotérica.

Enquanto a noite descia rápida, elas desciam lentas com as roupas dobradas nos tachos, e dispersavam-se aqui e ali, já sem poder - se verem entre si.

NOS VARAIS DE UMA VIDA

A roupa de quem não usa a verdade...

A verdade em quem não usa roupa...

As diversas roupas de uma verdade...

Quem sempre usou uma só roupa e nunca usou a verdade,

E, quem usa muitas roupas e poucas verdades...

Uma verdade em cada roupa, ou uma roupa para cada verdade?

Há muito tempo atrás, a lavadeira esotérica ouvira alguém lhe questionar os objetivos de viver “assim”. Ela tentara argumentar apenas “por que assado?”, e compreendeu imediatamente que quem fazia uma pergunta dessas não queria ouvir qualquer resposta. Ela percebeu que se você usa uma roupa, você expressa uma forma de se apresentar ao mundo. Assim, elocubra todo um sistema do que acreditar, pensar, sentir, etc. Para compreender algo diferente, seria preciso despir-se de todo o conhecido critério seguro de sua roupagem. E ela não lamenta pela incompreensão, ela não tem pena daqueles que se vestem de cordeiros, nem ódio dos que se vestem de lobos.

Ela apenas respeita aquele que se despe. Não espera que ele permaneça assim. Ela apenas se ocupará da lavagem da roupa.

Ela usa roupa branca. Assim sempre foi. Eu não sei porquê, penso que, se a roupa é um estado de consciência, ela tem a consciência limpa, clara.

NOS QUARADOUROS DA VIDA

Quarar ou corar

Branquear, expondo ao sol.

Denunciar vergonha, pudor, prazer ou embaraço.

Quaradouro: lugar onde se põe a roupa a corar

Dicionário do Aurélio

Ao vivermos nossas vidas usamos certas roupagens, que se adequam ao que preferimos mostrar. Nossas roupas contam sobre o que vivemos. É como uma interpretação relativa a tal verdade de viver. Cercamo-nos de filosofias, credo e posturas sociais que respondem em coerência ao que corresponde ao mundo real para nós.

A roupa no quaradouro ou no varal é como a exposição da ilusão do que vínhamos vivendo.

Neste local, as roupas não devem permanecer muito tempo, pois, prejudicará a passagem. A exposição excessiva endurece as roupas ou cria umas manchas que furam o tecido.

Uma roupa endurecida

Por ter sido esquecida

Nos varais da vida

Nunca ficará o tecido passado...

Passagem interrompida.

Verdade esturricada.

Quando criança, a lavadeira esotérica era tímida e quieta. Fez contato com a vida através da morte. Diz ela:

- Comecei a ver minha morte e a compreendê-la bem antes do meu corpo físico perder sua capacidade vital.

Vislumbro hoje o dia real, o estado de vida em que o mundo deve ser percebido.

A verdade pura é limpa

É anterior ao próprio homem

E, a sua idéia de vestir qualquer roupa

Para sugerir a verdade.

Nos atos simples, despidos de interesses terrestres,

Ou extraterrestres,

A verdade é fecunda.

Minha vida começou a ser recapitulada por mim a partir da perspectiva iminente da morte, quando, com angústia e leveza, fui acordada em meu berço para morrer.

Dali segui para a vida, sob o signo de Escorpião, visualizando a transcendência, na encarnação da própria existência.

Cedo percebi o mundo solitário que espreitava pelas paredes da casa do mundo velho - a solidão, o silêncio e a escuridão contidos em horas do dia e da noite, de um tempo cronometrado para todas as funções humanas.

Havia aquilo para viver.

Porque escuto quem me fala?

E o que escuto, é o que falam?

E se não escutasse o que falam, o que escutaria?

Eu mesma aconteço,

Escutando-me de dentro para fora.

Como falassem através de um túnel,

Soam-me vozes veladas

A verdade não aparece clara.

Soa tão baixo,

Que apenas pressinto,

Que o certo é o que ocorrerá.

Contou-me que chorava muito frente ao processo da educação.

Magoava-se com as críticas, tinha muito medo e o projetava em intensas dores de barriga.

Era uma menina sensível, demorou a falar, a andar e a gostar de relacionar-se. Sofreu zombarias ao falar tatibitate e gaguejar. Teve de fingir cedo, para ser aceita. Não sabia ler, não entendia os processos de soma (achava o um muito maior que o 10 porque era inteiro) e era muito tímida para tirar dúvidas. Gostava de ajudar a todos, dividia as culpas das mijadas na cama, de sua irmãzinha, em casa da avó. Admirava, de coração, a irmã mais velha, que tudo dividia com ela, e a protegia do mundo lá fora.

Ela chorava, de irritar a todos. Das freiras do colégio, só a Irmã Bernadete a compreendia, cedendo as saias ao seu terror pelo cão que guardava a escola.

Sua mãe a dirigiu ao mundo, com sua coragem inocente. Seu pai, com sua emoção, a sustentava com dengos e compreensão.

Tornou-se uma adolescente sombria. Silêncio e rebeldia.

Rebelde por defesa.

Silêncio por sabedoria.

O seu corpo crescia à revelia.

Ela resistiu ao processo social, buscando o emocional.

De um jeito estranho percebeu que o seu verdadeiro amor vivia distante e, distante seria a sua aproximação. Por isto, detestou os critérios concretos, práticos ou geográficos que lhe constatavam as impossibilidades amorosas.

Decidiu enquistar-se. Soube, pela Biologia, que certos espécimes naturais, frente a dificuldades ambientais, para que sobrevivam fecham-se em si mesmos até que haja o habitat ideal, para então eclodirem e serem felizes.

Com roupas endurecidas

Viu o grande amor de sua vida

Noite descendo pela montanha,

Esta penetrando em sombras, no céu.

Desaparecendo aos olhos comuns

Esperança romântica dos amorosos

Repicando pontos luminosos

Luz por trás da lua é o sol.

Verdade clandestina

(verdade adequada a sua forma de vida)

A lavadeira esotérica pôs o seu cisto ecológico para viver sua vida.

A bela flor surgiu aos olhos de todos

Com sua dor escondida pela falta do amor

Ninguém nunca soube

Ninguém jamais saberia

Assim, amada, viveu sua adolescência, desta feita mais simpática.

Era difícil de relacionar-se, embora carismática. Representou turmas, idéias e ideais. Cedo começou a se incomodar com a roupagem capitalista, vestindo a socialista. Era chata, engajada, nunca olhava, analisava e denunciava.

Não sentia, sofria.

Quando foi detida, percebeu-se detida anteriormente. Percebeu que o escudo que formara antes de protegê-la, limitava-a.

Interessou-se em compreender a necessidade de roupagens da espécie humana. Queria compreender essa verdade em si mesma: vestiu-se de branco como profissão e foi estudar as dores humanas.

A lavadeira começou a lavar roupas sujas para compreender sobre o processo humano. Ela lava roupas para não morrer de solidão. Esta lhe era fatal.

Ela sofria disto desde que nasceu, e mal sabia que esse era seu fardo. Amaria sempre ao que não a acompanhasse. Todas as filosofias que a encantavam continham o preceito solitário.

Ela sempre chorava, chorava escondida pela distância do que amava.

Parecendo contraditória, veio para a cachoeira trabalhar lavando roupas.

Eu fico pensando no que há com a lavadeira esotérica.

Como pode viver tão plena e feliz?

O que lhe prepara a natureza por constante ocupação?

Será paga com um ser ou emoção?

Ou será, com a sua própria solidão?

Diz ela, que no seu ofício, encontra toda sua vida.

É só isso que faz, com toda a coisa infinita,

Que há para ser vivida?

A gente sempre carrega mais, do que vive o que é carregado em nossa vida - interrompeu-me a lavadeira pensativa, antes do seu retorno definitivo à cachoeira.