Ella
"Todas as famílias felizes se parecem, mas as infelizes são cada uma à sua maneira. "
Liev Tolstói
Como ele ousava? Francamente...E como ela se deixara apanhar daquele jeito? Não apanhara nem do pai.
-Inferno...
Ella estava toda roxa, havia hematomas nos braços, o joelho ralado, a cabeça latejava. Queria fugir pra bem longe o mais rápido que podia, mas, sentia que não podia fazer isso. Todavia agora por mais que quisesse não conseguiria, não com aquele monstro bêbado plantado na sala.
Pé ante pé foi ao espelho, estava horrível. O que diria as filhas? À mãe que vinha visita-la todo santo dia? Diria que foi uma queda, sim, uma queda da escada, era a melhor desculpa. Mas sabia, que não ia adiantar, talvez as crianças acreditassem, já a mãe...E definitivamente escadas não deixavam marcas de dedos...
Sentiu uma raiva infinita do marido, afinal o que fizera pra apanhar? Nada, só gritou com ele por sempre chegar bêbado em casa. Não entendeu a reação dele, algo havia acontecido pra chegar a ponto de partir pra agressão física. Era a primeira vez que havia apanhado dele, talvez não acontecesse mais. Tomou um calmante e foi pra cama:
-Amanhã vai ser melhor. Eu sei que vai...Ele vai mudar. Eu sei que vai...
Mas não mudou...Na noite seguinte ele chegou bêbado outra vez e Ella achou melhor ficar calada pra não apanhar de novo, as memórias da noite anterior ainda estavam vivas em sua pele. Ficou quietinha enrolada na cama, ouvindo a tv ligada e ainda com medo ouviu os roncos que sinalizaram seu profundo alivio. Tomou mais um calmante. Precisava dormir antes que ele viesse para cama, ainda tinha medo,muito medo.
Ella queria saber porque ele se transformara em um monstro depois do nascimento das crianças. Ela tinha suas duvidas. Será que estava gorda? Perdeu a beleza que o fez se aproximar dela? Não, não era isso. Talvez tivesse raiva dela por não ter lhe dado o filho homem que tanto queria, podia ser, e ela já tinha notado que ele não gostava muito das meninas. E talvez ainda ele tinha arranjado uma amante e se cansado dela. Decidiu descansar a mente,e deixou que o comprimido fizesse efeito.
Depois de alguns meses as agressões começaram a se tornarem frequentes, quase diárias. Não sabia mais como esconder da mãe e das irmãs as marcas das surras, mantinha as aparências muito forçadamente e isso a incomodava, aquela maldita aparência . Em um dia tomou coragem e perguntou a ele o porquê daquilo. Ele simplesmente riu maldosamente e confirmou todas as duvidas de Ella enquanto a surrava com um rolo de macarrão.
A essa altura Ella, já não pensava mais nela, nem na mãe, e sim nas filhas que muitas vezes presenciavam as agressões, e que ficavam escondidas atônitas vendo o pai espanca-la impiedosamente. E o pior que ela não tinha coragem de parar aquela situação, não tinha coragem de contar a ninguém, embora fosse visível sua infelicidade.
Nem pra se matar ela teve coragem. Estava a caminho de tomar todas as caixas de calmante, quando pensou nas filhas e viu que ele não merecia isso dela. Arquitetou um plano, decidiu fazer da vida dele um inferno como ele tinha feito com a dela. Tentou deixar de cozinhar, mandou as meninas pra casa da mãe, que já sabia de tudo, e se trancou no quarto. A casa definhava, ficou suja, cheia de poeira, pratos sujos e Ella trancada.
Mas isso não surtiu o efeito desejado, pois invés de se irritar ele adorava chegar em casa e não ver a cara de Ella, e com o tempo passou a só ir em casa pra dormir. Ella não sabia como ele arranjava dinheiro pra se manter com as bebedeiras, a única que trabalhava na casa era ela, trabalhava em casa, no computador, trancada pra não ter que encara-lo.
A partir dai a situação só piorou, pois se Ella o contrariasse lá vinha a bofetada que em segundos se transformavam em socos. Ele continuava mais agressivo proibiu-a de trabalhar, queria tudo na hora, e nem por falta das filhas ele deu. Ella tinha que acabar com aquele inferno, não aguentava mais, saiu de casa naquele dia decidida a findar tudo aquilo.
O plano já estava armado. Ella foi pro quarto e ficou escondida, procurando o ultimo resquício de coragem e lucidez que ainda lhe restava. Esperou ele chegar, ir direto a cozinha, comer como um porco e beber ainda mais. Ella esperava que ele fosse ate a sala como de costume, mas seus planos foram frustrados pelo marido.
Ele entrou no quarto enfurecido e babando foi pra cima dela que já esperava o soco habitual, só que ao invés disso ele começou a reivindicar seus direitos de marido. Ella não queria aquilo, começou a gritar e foi calada imediatamente por um murro que quebrou seu nariz. Ele começou a possui-la contra sua vontade, e ela rezou aos céus nesse instante que a levassem dali, queria morrer apenas, deixar aquela vida.
Ao acabar monstro levantou-se e foi dormir na sala, deixando a esposa desfalecida, humilhada, envergonhada, machucada e com raiva.
Era agora ou nunca Ella tinha que fazer. Foi até o armário e pegou o instrumento que daria cabo de tudo. Analisou o revolver que comprara e aprendera a usar a poucos dias e a destravou.
Suas mãos estavam tremulas, mas seu olhar estava firme. Foi até o marido e apontando para sua boca aberta que trepidava em um ronco puxou o gatilho.
Juntou suas coisas o mais depressa que pode, entrou no carro e foi cantando pneus até a casa da mãe, despediu-se dela e das filhas e com o coração partido contou o que havia feito. Implorou a mãe que cuidasse das filhas e partiu. Seguindo sem rumo, parou o carro em uma ponte, desceu e ficou a contemplar as aguas fundas e escuras. Preferia morrer a deixar que as filhas a vissem presa, ela tinha que terminar o que havia feito era um caminho sem volta.
Jonathan Soares