Marina
Era uma daquelas tardes de primavera, que quando se vão deixam um céu rosado; era uma daquelas tardes, que parecem saídas de um filme com final feliz. Fora dos filmes, uma tarde alegre não significa necessariamente pessoas felizes. Na cabeça de Marina, que ajoelhada no chão do boxe, chorava durante o banho, só uma frase existia: Por quê?
Na verdade, ela tinha uma série de “porquês “dados e explicados por ele. Como entender, então? Eles fariam 3 anos juntos na semana seguinte, quando Ricardo veio lhe dizer que já não a amava mais, que a relação deles tinha virado só um hábito, e fim. Era isso. A sensação que apertava Marina, por dentro, era a de ter ficado na plataforma, enquanto o trem partia.
As lágrimas não paravam de cair, e ela agradeceu por seus pais não estarem em casa, como contaria a eles? Desde o começo seus pais adoraram o Ricardo, mais ainda depois de quase
3 anos de convivência. A primeira vez que vira Ricardo foi numa manhã em que ia pra escola, chovia muito e o ônibus não passava de jeito nenhum. Então, Marina resolveu deitar no chão. Sim, ela deitou no chão do ponto de ônibus. E fechou os olhos.
As pessoas no ponto olharam espantadas. Ricardo, que a estava observando desde que ela chegara, achou graça, mas resolveu não incomodar a menina. Afinal, que mal ela fazia? O ônibus dele chegou, ela levantou também e entrou antes dele. Correu pra sentar num dos poucos bancos vagos e colocou seus fones de ouvido. Algumas pessoas reclamaram dos esbarrões dados por ela no caminho tão apressado, para que ninguém sentasse lá. Mas ela não as ouviu. Ricardo riu de novo e foi ficar em pé perto dela.
Contudo, sua observação muda foi atrapalhada, quando numa curva mais fechada, sua bolsa bateu no meio da cara de Marina. A menina meio que acordou do transe em que estava, de olhos fechados e música alta, que ele ouviu e era samba. Olhou pra ele com uma expressão funda de raiva e sonolência. Ricardo se assustou, ela parecia tão doce, meiga e tinha um jeito de quem não liga pra ninguém. Pediu desculpas, as quais Marina não respondeu. Mas parecia não ter aceitado, porque tirou os fones e ficou acordada, com aquela expressão que doía em quem via, tão mal encaixada no rosto leve.
Depois de alguns minutos, ela se levantou pra descer do ônibus, ainda emburrada. E quando levantou, pisou no pé de Ricardo, e com força, é bom saber. Deu um meio sorriso debochado e disse: “Ah, me desculpe!”. E bastou isso pra que Ricardo levasse o dia inteiro pensando na menina.
“Ela tinha um rosto de anjo, não fosse pelos cabelos tão pretos, podia-se mesmo dizer que era, mas sempre pensamos em anjos louros. E aquela cara emburrada? Anjo nenhum podia ter aquela expressão, vai ver foi por isso, que ela caiu na Terra”. Riu sozinho, estava ficando bobo. Em 23 anos de vida, nunca um desconhecido lhe despertara tanta curiosidade, ainda mais uma menina que devia ter no máximo 15 anos. Continuou a trabalhar.
No dia seguinte, ela estava lá de novo no ponto de ônibus, dessa vez sentada. No chão. E já com os fones, parecia acordada. “Seria samba?”, ele se perguntou. O ônibus viera depressa e dessa vez ele também correu para sentar, depois dela, é claro. Sentou-se ao seu lado. Ela não o vira. Abriu a mochila, pegou uma caixinha de óculos, tirou-os de dentro e limpou as lentes, guardou de novo. Pegou um livro: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Começou a ler, sem os óculos.
Ele sorriu e pensou: “Bem a cara dela!”. E ficou perturbado com esse pensamento, ele era um homem de 23 anos, não podia achar que conhecia uma garotinha que só tinha visto por um dia. Ela se sentiu observada, olhou pra ele e o viu olhando-a. Ele desviou os olhos meio atrasados, ela fez uma cara de quem se lembrava bem dele, a mesma de ontem. Ele ficou envergonhado.
Ricardo virou-se pra ela e disse: “Oi, me desculpe por ontem, foi por causa da--“. “O quê?” Ela tirou os fones: “O que você disse?”. “Foi por causa da curva, ontem, desculpa, a bolsa”. Sim, foi assim que ele pediu desculpas. Ela riu mesmo, alto, e recolocando os fones, disse: “Tudo bem!”
Ele ficou irritado e virou pro corredor do ônibus. Ela notou e disse, retirando os fones: “Pô, desculpa, não ri de propósito, não. É que foi engraçado mesmo. Mas ontem doeu, hein? Eu ‘tava distraidona”. E sorriu. E ele sorriu também. “Foi a curva”. “É, você disse”. E ficaram em silêncio.
Até que ele se apresentou, perguntou o nome dela. E conversaram. E ele descobriu que ela não tinha 15, mas 17. E conversaram. Foi assim por quase um mês.
Depois marcaram de ir ao cinema, algo fora de um ônibus, mas foram juntos, de ônibus, já que moravam perto um do outro. No cinema, ela chorou. Muito. O filme inteiro. Ele também, mas tentou esconder. Ela fingiu que não viu. Conversaram sobre o filme, sobre a escola dela, a faculdade dele, o trabalho dele, as famílias, os amigos; riram e beberam muita Coca-Cola, até ela dizer que iria explodir de tanto líquido e ele achou graça do jeito como ela falou. Deu um beijo nela. Assim, no meio do riso. Ela se assustou e se afastou. Ele ficou envergonhado e abaixou a cabeça.
Ela olhou ele assim, de cabeça baixa, lembrou dele chorando durante o filme, lembrou da bolsada no meio da cara. Sorriu. Ele olhou pra ela. Ela o beijou. E tudo tinha sido assim nos últimos 3 anos, pra ela. Pra ela.
Só podia ter sido apenas pra ela. Como ela não percebeu que ele já não a amava? Como ela não percebeu que tudo virara um hábito? Será que era alguma outra mulher? Será que ele não a amava porque gostava de outra? Não. Ele disse que não, ao menos.
As lágrimas secaram. Não conseguia mais chorar. Nem queria. Saiu do banho, olhou no celular. Oito ligações não-atendidas, três de sua melhor amiga, Joana, e cinco de sua mãe. Ligou pra mãe, ela já sabia. Perguntou nervosa como ela estava. Ela respondeu que bem e perguntou como ela sabia. A mãe disse que Joana tinha ligado preocupada pra ela, dizendo que Marina ligou chorando, contando tudo e que depois não atendia mais o celular. Mentiu que almoçara. Desligou.
Marina se arrependeu de ter ligado pra amiga. Ninguém pode confortar aquilo que não há conforto. Descobriu isso, assim que desligara o telefone. Sua mãe já devia ter ligado para o pai e para o irmão, que era casado, e já devia ter contado pra esposa. Marina sentiu vergonha, ela que sempre fora dona dela, que nunca se envergonhou de nada, que nunca ligou para o que pensariam. Dessa vez, pensou; dessa vez, pesou. A opinião dos outros, tudo, tudo pesava.
Por alguns instantes, sentiu que ia desabar. Desabou. Ninguém veria. Ficou na cama, olhando o teto por alguns instantes, que pareceram horas. Detestou se sentir assim, pesada, abandonada, enganada – mais por ela mesma, do que por Ricardo. Ricardo... Ricardo? Ele não tinha culpa. A culpa só podia ser dela, na necessidade de ser amada, não sentiu que já não o era, ficou com a ilusão. Iludida. Desiludida.
A culpa era dela, certo. Mas ela também era sua própria juíza. Sempre fora. Não precisava se submeter ao julgamento de ninguém. Nunca se submeteu. Então, decidiu que se absolvia. Decidiu que dava outra chance pra ela. Afinal, ainda era ré-primária. Vestiu-se. Saiu.
Quando voltava, de ônibus, com fones de ouvido e olhos fechados, pensava: “Nova!” O celular tocara, era Joana, de novo. Atendeu. “No ônibus. Tô bem, sim! Tá! Tô chegando em casa já, sua chata!”. Abriu a porta de casa, ainda com os fones, ouvindo samba. No sofá, estavam sua mãe e Joana, seu pai na cozinha, correu pra sala ao ouvir a porta. Olharam pra ela abismados: Com o rosto levemente descontraído de sempre e sua inconfundível expressão de: “Tô ouvindo um samba”; os cabelos curtos, cacheados e louros, estava ela. Um anjo.