O filme de terror

O padastro chegava da fábrica, calado, o rosto fechado, o olhar ausente...

Sua mãe entendia o homem e, fitando-o, ele o filho, menino naquela época, falava baixinho, receosa de uma repentina reação do outro que agora na cadeira de balanço, achava-se no terraço, a atenção voltada (voltada?) as moradias no morro defronte:

- Gil não chegue perto dele...

O aviso. A voz trêmula. A fisionomia moreno pálida, mais afilada. E prosseguia:

- Vá brincar com os seus coleguinhas.

Obediente atendia-a e, em passos cautelosos devagar se encaminhava à salinha, o terraço e cruzando o pequeno jardim, ao abrir o portão, encontrar-se-ia na rua estreita, ladeirada, contudo, ao passar pelo padrasto, esse explodia:

- Pra onde vai moleque? Deve ir se ocupar com besteiras! Enquanto eu me lasco trabalhando, a mulher e o seu filinho não se interessam por nada, vivem no “flusor”!

A voz gritada. O homem fora de si, vencido pela raiva, a explosão injusta.

A mãe muda, na sala. O rosto pálido, suando. As mãos trêmulas, sem governo. A vista embaçada das lágrimas gordas.

- Não vai sair não. Possa ficar com o rabinho em casa. Engraçado: trabalho para sustentar malandros!

O rosto vermelho. Os olhos dilatados. A voz então enrouquecida.

Cabisbaixo, ele retrocedia. O choro vindo...

- Com esses dois tou bem servido!

A cadeira na cadência de ir para frente e para trás, sob o impulso das mãos largas, fortes...

Aí o silêncio da voz, e os soluços contidos, humilhados da mãe, entregue à dor.

- É, mas, tudo passou.

Entretanto, a lembrança permanece, como num filme de terror, para nos assustar de novo a alma!

Dirige. Tem que se apressar, pois logo essa avenida se encherá de veículos e os “engarrafamentos” se sucederão.

- Tudo passou...

A repetição, no desabafo natural de quem foi marcado para sempre pela vida de criança pobre, vítima do desajuste, a incompreensão do sujeito grosseiro, mau.

- Com esse temperamento esquisito, o Gil não será nada na vida. Digo isso porque estou vivido, tenho experiência de vida.

Os olhos que o encaravam numa censura, rancor.

A mãe próxima, silenciada pelo que presenciava, fazia parte. A submissão repetida.

Cabisbaixo, trêmulo, suando, ouvia.

- Eu quero ver quando o filinho dela tiver de enfrentar a vida prática.

A pausa e a conclusão:

- Alesado como ele é...

O carro avança, aproveitando a avenida descongestionada. A tarde escurece. O céu se torna cinzento. Pelas calçadas laterais, pedestres caminham, entregues aos seus destinos à semelhança de formiguinhas sob o comando de uma grande Força.

Uma manhã, a mãe sentada ao seu lado, no sofá, falou num desabafo e conselho:

- Gil, meu filho, não se deixe intimidar pelas grosserias do Arnaldo. Ele, coitado, é um analfabeto, um operário mal remunerado, sacrificado... Você é inteligente. Procure ser alguém. Estude. Aprenda uma profissão.

A mão fria sobre o seu braço, num carinho, numa transmissão de energia...

Mas o que passou não lhe terá servido de estímulo para enfrentar o próprio destino?

- A gente tem de sofrer Gil, se aprende sofrendo. A dor constrói.

Dissera-lhe a colega de seção, quando há pouco estavam na reunião do final do ano, na confraternização da empresa.

- Também acho Celina.

O rosto moreno, bonito. Os cabelos negros, estirados, longos. Os olhos que falavam num convite. O sorriso aberto, na franqueza, inteligência e... Por que não convida Celina para um jantar a dois?

- Gil, você está indo bem como chefe da seção.

Ele sorriu modesto.

- Pelo menos eu tento...

As vozes dos outros. As risadas. Os garçons servindo. O ambiente descontraído, alegre. E a mão de longos dedos pousando sobre a sua, na “cantada” e a confirmação do amor revelado...

O carro vence a avenida, que de repente, vai se enchendo de automóveis, motos, bicicletas, buzinas nervosas. Os transeuntes nas calçadas em número maior. As formiginhas. Tudo sob o comando de uma Força. Sim, haja o que houver, a marcha prossegue, numa prova incontestável dessa Força Maior.

Adentra no Bairro do Espinheiro, já então, com as luzes acesas dos edifícios modernos, imponentes, bonitos. As luminárias dos postes acesas. O sinal fecha. A mão pequena que bate no vidro.

O rostinho branco, pálido, os cabelos alourados crescidos, os olhos tristes, o meio sorriso humilde... À semelhança daquele menino de outrora, que era xingado pelo homem grande, quando chegava do emprego. Então, busca a carteira no bolso do paletó, retira a cédula e descendo o vidro, repassa-a a pequena mão suja.

- Agradecida moço. Deus lhe pague.

O sinal abre.

Ele se volta ao vidro sobre a direção e fechando o outro vidro, ganha a rua à esquerda, indo em frente. Sentindo uma “coisa”...

- Diabo! Tou ficando muito sentimental.

Com a mão livre pega o lenço de novo no paletó e passa-o nos olhos nublados. Enxugando (enxugando?) o que sente.

Sim, Gil, com a idade a gente muda...

Cruza a ponte. A noite então, é senhora da cidade de luzes e viventes, com seus dramas íntimos, humanos.

2

Estacionando o carro no oitão do prédio, salta.

Devagar, vence os degraus que o conduz ao primeiro andar, com a mãe na varanda, esperando-o.

A cabeça branquinha. O rosto marcado pelo tempo. O olhar distante. A voz trêmula, baixinha:

- Gil?

- Sim, sou eu, mamãe.

Aproxima-se e lhe beija a cabeça, no carinhoso gesto ao chegar do trabalho.

Depois se senta na cadeira à frente.

- Tudo bem no emprego?

- Tá, mamãe, tudo “nos conformes”.

Silenciam e, como todo início das noites, vem a voz que é mais um grito incompreensível, dos fundos do apartamento. E, numa repetição, a mãe fala:

- O Arnaldo tá cada vez pior, ninguém entende o que ele quer dizer.

Ele nada responde. A mãe prossegue:

- Se não fosse essa enfermeira que cuida dele, sei não...

A cadeira indo e vindo, numa cadência. À noite se exibindo as luzes das residências que circulam a praça através embaixo, deserta de almas, como se fosse o abrigo da solidão. E a mãe, no conhecido desabafo:

- Maldito derrame! Ninguém é nada não, meu filho. Há sim, o retorno, o castigo!

- Sim, mamãe, o retorno... Mas, deixe-me ir tomar o banho.

Ausenta-se. Pensativo, enquanto a velha senhora fecha os olhos, numa sábia aquiescência.

- Assim é a vida.

Diz, e o grito incompreensível novamente se ouve.

- Estou aqui, Seu Arnaldo.

O outro grito da enfermeira, no controle, acalmando o enfermo.

A idosa senhora então abre os olhos, perplexa, dentro do seu pesadelo de todas as noites.

Quando li me lembrei de João Antonio. Paulo Valença é um grande cronista do cotidiano dos marginalizados. É um escritor de verdade.

Comentário enviado por:

William Porto em: 19/8/2010.

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 19/04/2011
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