A MARGEM OPOSTA
A margem oposta
Passei a viver assim calado, taciturno, caminhando sozinho pelas vielas escuras como um vampiro à cata de sangue. Bobagem, a única coisa que talvez nos unisse é a terrível solidão. Tão sozinho como este casaco estirado na poltrona, esperando que sacuda o pó e o leve comigo. Este frio que me atazana, que me dói as carnes, que me comprime os ossos, que me deixa zonzo. Melhor seria não sair de casa, não enfrentar o vento que fustiga o rosto, que me arde os olhos, que resseca a boca, resfria a alma. Melhor ficar em casa tomando caldo verde ou chocolate quente. Melhor esconder-me entre as cobertas macias e ocultar-me do mundo. Mas preciso ultrapassar as barreiras de meus medos e dar vazão à solidão que me assola e me deixa assim, desconsolado. Se ao menos pudesse cometer delito, qualquer delito, mesmo insosso e insano, sem conseqüência. Qualquer coisa maluca, que não falta grave, mas que me levasse a expiar minha culpa. Pudera viver como um pária, à margem de tudo, alienado de seus pares, afastado de sua vida mais intima. Por certo, teria motivos para prosseguir. Caminhada infértil, estéril, vazia. Quem sabe viveria um momento, um só que fosse, capaz de me transformar em um ser útil.
Agora, desço correndo as escadas e me deparo com a lufada de vento da esquina. Uma esquina sem luz, que se esconde, fronteiriça do mar. Quisera observar de perto as luzes que oscilam nas ondas negras, brilhando vez que outra, motivadas pelo vento. Quisera atravessar até a outra margem, afundar meus pés na lama entre os bambus mergulhados. Perscrutar quieto, coração atento, o pousar das corujas, observar seus olhar sagaz nas sombras da noite. Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários. Mas ao contrário, o que faço é afastar-me da visão noturna da margem oposta, imiscuir-me na cidade, alicerçada em luzes e figuras baratas. Mulheres que passeiam pelo cais, acenam, gesticulam obscenas. Soturnas, tristes, sozinhas. Tanto quanto eu e o vampiro de minha fantasia. De repente, as luzes parecem mais intensas, vibrantes, coloridas, movimentos giratórios, alucinantes. Sons que emergem, línguas de fogo ágeis passeiam por bares soterrados, pessoas que correm, sons delirantes, ruas apinhadas, trânsito parado. Fecho a gabardine até o pescoço. Puxo a touca até os olhos. Nariz congelado. Óculos embaçados. Minhas pernas finas, joelhos batendo dentro das calças, ensaio passos pela calçada lateral. Um cheiro de gordura do bar de luz amarela e fraca, me dá náusea. Me apoio e sinto doer as costas no muro de pedras. Tenho vontade de perguntar o ocorrido, acidente, crime, assalto. Tudo me vem à mente, mas pouco se transmuta em meus lábios. Raramente falo, fico assim, aquietado, alienado, mudo. Temo ser mal interpretado. Temo respostas. Compartilhamento. Parcerias. Acho que temo viver. Olho em torno, a gordura se mistura com a fumaça do cigarro do homem que passa sorrindo, resmungando coisas sem nexos, iluminado no néon do bar. Uma mulher se aproxima e por um momento, pensei que se dirigia a mim. Meu coração saltou, desavisado. Mas ela como os outros, entrou no bar ou voltou de onde estava. Nada mais lhe interessava lá fora. O frio fez-me bater dentes. Talvez pela ansiedade. Uma turba voltou aos gritos, conversas aceleradas, corações abalados. Entraram no bar e aos poucos me levaram consigo, como se fosse aquele casaco pendurado na poltrona, que precisava de uso. Entrei distraído, olhando pro nada. Mas vi uns balões pendurados no teto, então lembrei das noites de São João, fogueiras ao relento, chimarrão fumegando, quentão queimando a garganta e nossos olhares congelados na visão dourada do balão que subia. O céu puro, abrilhantado de estrelas. Quase cartão postal. Nem percebíamos o frio que enregelava os mais velhos. Depois, olho pro solo e vejo a lajota rugosa, petrificada, envelhecida, em preto e branco e me vi pulando amarelinha, espiando no ladrilho brilhante meus olhos cheios de vida. Aos poucos, deixei de pensar. Fui empurrado pelo grupo até o balcão. Um copo de cachaça bateu no balcão de granito danificado. Uma mão firme no copo, uma mão macia no ombro. O homem me ofereceu, limpando os bigodes, passando a língua pelos lábios, como que purificado pelo álcool. Do outro lado, a mulher da mão macia, me encarava lasciva, revelando na boca vermelha e no olhar negro, a ponta de alegria que personificava a máscara. Olhei para um, para outro. Aceitei o drinque. Ela perguntou, voz fina, esganiçada. _Tá procurando diversão?
Diversão? Era só o que eu procurei em toda a minha vida. A cachaça escorreu pela goela, um calor agradável assaltou meu peito. Estufei de alegria. Por um segundo. Logo, a encarei, sério, após largar o copo. Tentei afastar-me, foi só um gesto. Ela segurou meu braço, precisa. _Tá muito frio lá fora, moço. Aqui dentro ta gostoso, não acha? – apoiou o pé da bota de cano na divisória do banco. Gesto estudado, sedutor. O vestido com um rasgo na frente revelou uma coxa branca e macia. Pegou minha mão e fez com que acariciasse sua perna. Uma música brega envolvia o ambiente, agora numa sonoridade absurda, deixando-me zonzo. O homem dos bigodes prosseguia ao meu lado, também conversando com outro grupo, ingerindo comentários sobre o evento que parecia ter transtornado a todos. As mulheres já haviam esquecido, mergulhadas em que estavam em suas atividades rotineiras. Umas atendiam no balcão, nas mesas, outras cantavam os clientes. De súbito, o homem voltou-se pra mim o que me obrigou a fitá-lo, tenso. A voz soou como trovoada longínqua, mas forte, anunciando tempestade.
_Você não é o Gomes?
Balbuciei qualquer coisa, desconfiado. Ele nem me ouviu. Prosseguiu, inquieto. _Não é o Gomes, o detetive? Disseram que tu tinha morrido, rapaz. – e antes que eu refutasse a informação, gritou – Pessoal, o Gomes tá aqui. Disseram que tinha virado comida de turbarão, tudo mentira.
_Não, não sou o Gomes.
A música mudou para um funk entrecortado. Vozes se misturavam, batidas isoladas. Marinheiros se mexiam nos cantos, ruminando as toadas, conduzindo os corpos em movimentos dublando cantores. O homem se afastou para um grupo maior, seguido pelo que estava próximo ao balcão. Num círculo, gritou em tom alto, fazendo-se ouvir. _Pessoal, hoje a gente paga pro Gomes. Quem diria que o cara tá vivo, não é? –Continuou o discurso, animado. Voltei-me para a mulher, afirmando-lhe que não era o Gomes, mas ela parecia apenas acompanhar o movimento dos meus lábios, sem traduzi-los. Repetia, satisfeita. _Que bom Gomes, que bom que você está aqui. Lembra daquela furada que você me salvou? Jamais vou esquecer, cara.
Tentei argumentar, afastar-me, minhas pernas bambolearam. O banco estremeceu, quase desandando ao solo. A mulher segurou rapidamente, auxiliando-me com exorbitante solicitude. Abraçou-me, enquanto dezenas de freqüentadores se aproximavam, puxando conversa, narrando casos, aventuras, noitadas, nas quais eu era sempre o protagonista. Não eu, ele. O Gomes. A bebida rolava no balcão. Até um cigarro de maconha me ofereceram. _Sei que tu é da lei e não é destas coisa, homem. Mas não quer experimentar? Hoje é dia de festa. Então gritei com raiva, não, não, não queria nada. Eu não era o Gomes. Minha voz, antes indecisa, imprecisa, vibrou uniforme, grave, voraz. Um silencio sepulcral se fez no ambiente. Pesado, absurdo. Até o funk parou. Mas o homem de bigodes interrompeu e gritou, destemperado. Suava aos borbotões. Eu e ele. Minha testa tinha gotículas, a dele, rios de suor. _Pessoal, bota um pagode, que o Gomes quer pregar mais uma das suas peças na gente. Ele é o Gomes! –e todos gritaram em uníssono. Gomes, agora tu vai dançar o pagode, cara. E a Marielsa vai te acompanhá. É o seu carma, não tem jeito.
Então, ingeri o conteúdo restante do copo. E mais enchiam, mais tomava. O grupo fez um círculo em torno de mim e da mulher, que estava ao meu lado. Devia ser a Marielsa, porque ria sem cessar. Reparei que tinha uma falha de dente e o olho esquerdo piscava a cada segundo, fechando de um jeito estranho, contornando a boca de maneira concomitante. Fiquei parado, estático, patético, no meio da roda. O disco tocou, numa voz alucinada, parecendo transbordar de sentimento, misturado a festa, num mundo homogêneo de alegria e cumplicidade. Marielsa aprumava o corpo, seguia o embalo da melodia e se enroscava como uma serpente, tão rápida, que me cegava. A bunda rebolava, sacudindo como gelatina no prato. Minha mão trêmula segurava a gelatina, afastando-se devagar para a cintura fina, mas ela a conduzia para baixo, derreando a mão, seguindo o contorcionismo do corpo. Fiz alguns gestos, meus pés se espalhavam no solo, desajeitados, filhos pródigos de um pai atencioso. Minha alma extrapolava o corpo e regurgitava os efeitos do álcool. Meu cérebro detonava a canção. Ouvia Tom Jobim, Agostinho Santos, “a noite é só nossa, no mundo não há mais ninguém”, Elis Regina, Maysa, meu Deus, “meu mundo caiu”. Eu estava na bossa nova e eles no pagode, e em seguida, no bonde do tigrão, na Tati Quebra Barraco, boladona, boladona, tapinha nada, me chama de cachorra. E a acrobacia cada vez mais criativa, nos trejeitos, nos gestos, nos tapinhas na bunda. E o povo gritava, vai Gomes, mostra teu babado. Então, investi-me no personagem: eu era o Gomes. O Gomes alegre, folgazão, esperto, ágil, machão e machista. O Gomes do pedaço. Comecei a abraçar Marielsa, a beijá-la, sentir o seu corpo colado ao meu, até entontecer no bolero da Ângela Maria, “a luz do cabaré já se apagou em mim, o tango na vitrola, também chegou ao fim”. Comecei a fumar junto à bebida, uma mistura estranha, que me amaciava a alma. Os amigos do peito se achegavam, contavam casos, se ofereciam a amparar-me em qualquer situação, até insistiram para contar como me livrei do afogamento. Então, me aventurei pela imaginação, criei desde Melville a Júlio Verne e todos me ouviam quase com fervor literário. Silêncio absoluto. Só minha voz metálica tilintava no ambiente. O anel se fechava a minha volta. Eu, cada vez mais solto e seguro. De repente, ouviu-se o ruído do vai-e-vem da porta e um homem alto e magro, com uma cicatriz próxima à boca surgiu, como nos filmes de faroeste, apossando-se do saloon. Ensaiou dois ou três passos em minha direção. Eu parei, tranqüilo, ousado. Até sorri. Ele colocou uma mão na cintura, talvez identificando uma arma. Todos se afastaram um pouco. Marielsa correu para o balcão, seguida pelo homem do bigode que havia me oferecido a cachaça, logo que cheguei. Percebi que enchiam os copos e observavam apreensivos. Eu segurei-me impávido, nas pernas finas, rijas, seguras no solo, soltas dentro das calças. O homem vestia-se todo em couro: calças, jaqueta, botas. Perguntou, retumbante, bem mais forte do que a de trovão do outro. Raio riscando o céu, faiscando os bambus no charco, enchendo de chamas o mar escuro. _Você é o Gomes?
Confirmei, firme, quase arrogante. _Sim, sou o Gomes.
Puxou a arma disparou um, dois tiros. Um pegou bem no ombro esquerdo. Ainda o vi se afastando e confirmando a sentença. _Paguei a minha dívida.
As pernas fraquejaram. Marielsa correu ao meu encontro. Segurou-me nos braços, como a Virgem. Os outros como pingüins em bando, me acercaram. Então pensei estar cruzando para a margem oposta do cais, mergulhando os pés na lama junto aos bambus, espiando as corujas examinarem o mundo e logo baterem asas, som abafado acordando a noite. Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários. Saberiam por certo, que não sou o Gomes.