Da morte, ele tinha medo
Qual era mesmo o nome dele?
Poxa, vida, eu não me lembro. Mas me lembro de uma conversa que tivemos no primeiro e último dia em que nos vimos.
Andava eu, todo enraivecido por ter cortado meu dedão do pé numa pedra lascada de uma calçada qualquer. Sem muito motivo, talvez com medo da cicatriz que poderia ficar e por ver tanto sangue saindo do meu corpo, corri para o hospital. O médico disse que eu teria que dar alguns pontos. Fui enviado para um pequeno quarto, onde eu esperaria a minha vez de concertar o estrago no meu dedo.
Segurando o meu dedão com um pano todo ensangüentado, gemia de dor. E, não fosse um pequeno sussurro, não perceberia a presença de outra pessoa no quarto. Era um homem de certa idade deitado numa maca, coberto por um lençol branco. Havia um vidro pendurado ao lado da maca com uma pequena mangueira que levava o líquido até o braço do homem.
Aquele homem sussurrou mais uma vez e eu percebi que ele olhava para mim.
Falava algo que eu não entendi, mas suas mãos mostraram o significado de suas palavras. Ele movimentava as mãos para que eu me aproximasse.
Talvez a dor do pé não tenha desaparecido, mas, por um instante, eu deixei de pensar nela e comecei a refletir no que aquele homem queria. Demorei alguns instantes, mas, mancando, com o dedo do pé enrolado no pedaço de pano avermelhado, me aproximei da maca e me sentei numa poltrona postada ao lado dela.
“Rapaz, eu tenho medo da morte”, sussurrou o homem. A voz era tão rouca e fraca, o rosto exibia uma longa seção de sofrimento. O que aquele homem tinha? Por que ele estava me falando aquilo?
“Não tenha medo dela, ela faz parte da vida”, disse eu depois de um tempo.
“Eu sei”, disse ele com muito esforço recostando a nuca no travesseiro e erguendo o olhar para o teto. “Todos me falam isso, mas agora eu tenho medo da morte”. O olhar do senhor se perdeu por um instante. “Sabe, meu filho, todo homem que nasceu tem que morrer, mas todos eles têm que ter o direito de viver... agora eu sei...”, a voz do homem se perdeu em meio a algumas tosses. “Eu queria ter vivido”.
“Mas o senhor não viveu?”, não me lembro com que intenção, mas perguntei isso quando o homem abriu uma pausa.
“O que você entende por vida, meu filho?”, os olhos dele me interrogavam, não soube de imediato se deveria responder à pergunta. Antes que eu pudesse decidir em respondê-la, ele continuou: “A minha vida foi marcada por bebedeiras, muitas mulheres, muitas festas, algumas drogas... isso não parece ser bom? Só farra.”
Talvez, nesse momento, meu dedo ainda sangrasse, mas eu nem mais me lembrava dele.
“A verdade é que não é bom”, continuou ele. “Sabe de uma coisa, eu nunca tive um filho. Eu nunca tive uma mulher que tenha me amado por mais de uma noite. Eu nunca tive minha família, eu nunca tive amigos... eles só apareciam nos momentos de festa, mas nos momentos a sós, eu nunca os tive”. O dedo indicador do homem deu uma leve erguida e se movimentou como se me mostrasse a extensão do quarto. “Você vê alguém aqui além de nós dois? É... somos só nós e você nem mesmo é meu amigo.”
De repente um longo silêncio se fez, não sei ao certo o que pensei nesse momento, mas ele foi quebrado pelo próprio homem:
“Me disseram que quando tudo fica silencioso, quando as pessoas não conseguem falar, é porque um anjo acaba de passar entre elas”, a voz do homem ficou mais embargada e seus olhos ficaram vermelhos. “Acho que isso é um sinal. Eles vêm me buscar”. Uma única lágrima escorreu pela face dele e depois seus olhos secaram novamente. “Eu tenho medo da morte”, disse ele por fim. “Eu tenho medo da morte porque eu queria viver, eu queria ter uma vida que não fosse aquela que eu tive... e eu sei que não vou mais ter essa oportunidade.”
Os olhos daquele homem fitaram mais uma vez o teto e, um momento depois, se fecharam lentamente.
“Deixe-me descansar agora.”
O observei deitado naquela maca. Ele era tão frágil. Como será que tinha sido sua vida? Será que ele merecia morrer?
Antes que meus pensamentos voassem para outras questões, a porta do quarto de espera se abriu e uma enfermeira entrou.
“Márcio Arroyo”, disse ela. “Pode me acompanhar, por favor?”
Mancando, mas sem dar importância alguma ao corte no meu dedo, caminhei para a saída. Mas, antes de sair pela porta, olhei uma última vez para o senhor na maca, os olhos dele fitavam os meus tão densamente que pareciam entrar na minha alma.
Dessa vez as palavras dele soaram com força suficiente para chegar aos meus ouvidos claramente: “Viva, meu filho”.
Saí da sala.
Antes de entrar na sala para micro-cirurgias, estaquei no lugar e, segurando o braço da enfermeira, lhe perguntei:
“O que há com aquele homem?”
“Bem, ele está com um grave câncer... é bem provável que ele não passe dessa noite.”
Realmente fiquei impressionado com o modo como a enfermeira falou, pareceu não transpor nenhuma emoção de tristeza, mas decidi não questioná-la sobre isso.
Não durei muito tempo na sala para cirurgias pequenas e já estava novamente no corredor do hospital com o meu dedão do pé agora com os devidos curativos. Quando passei perto da porta da sala de espera, escutei um dos médicos falando para outro ao lado do homem da maca, que agora dormia: “Realmente esse homem não merece viver, bem feito para ele”.
O que posso falar? Tudo isso mexeu realmente comigo. O que tinha feito aquele homem para as pessoas falarem assim dele? Alguns dias depois eu descobri, quando, de manhã, peguei o jornal e vi estampada numa das páginas do interior do jornal, a foto do homem. Era uma foto antiga, mostrava seu rosto, mais novo, mais encorpado, quase não era possível relacionar o homem do hospital com o homem naquela fotografia, a não ser por alguns traços que deixavam claro que era a mesma pessoa nas duas fotos. A matéria falava sobre a morte do homem que havia matado várias pessoas, a maioria delas mulheres. Há muito ele era procurado pela polícia, mas só foi realmente pego quando a doença o levou para a enfermaria de um hospital.
Imediatamente me questionei sobre como aquele homem pôde falar que todos têm o direito de viver, se ele matou tantas pessoas. Talvez aquilo fosse arrependimento.
Por um tempo quis esquecer o meu encontro com o tal assassino em pleno leito de morte, mas a última frase que escutei da boca daquele homem não me deixou livre do meu mais terrível questionamento.
“O que será que é viver?”