Overdose
Não preciso entender muita coisa de medicina ou mecânica de motores, pra eu afirmar que ambas as atividades tem muito em comum. Ambas lidam com máquinas: o motor e o homo sapiens. O funcionamento se não é exatamente igual é muito parecido.
Assim, quando o médico nos pede exame de sangue, por analogia o mecânico manda ver o óleo do carter; quando é para avaliar o grau de anemia, o mecânico manda verificar se a gasolina não está sendo adulterada; quando o paciente tosse e escarra, o pulmão lhe é examinado e faz-se cultura da secreção em laboratório de análises, o mecânico verifica o carburador; se o coração falha troca-se sua válvula como o mecânico troca as velas; se o problema são gases fétidos e frequentes toca a tratar o intestino e o mecânico manda ver o cano do escapamento. Tanto assim é que distinguir entre escapamento aberto de veículos e traques da população é um páreo duro. São tantas as parecenças entre as profissões que uma tarde dessas, com a camionete apresentando um probleminha, entrei na Oficina do Zé da Lata esperançoso que ele pudesse dar um jeitinho naquilo; prevendo que não iria receber nada pelo serviço, afrontou-me de pronto:
- Atendimento SUS só na parte da manhã!
Ah! O Zé da Lata! Na nossa juventude (parece que foi ontem), quando o Zé era mecânico-residente na oficina do Manézinho, filho do Manoel Barreiros, tudo quanto era pepino que aparecia já se sabia quem iria resolver: lógico, era o residente Zé Hermínio. Com o tempo é que adquiriu o sobrenome de "da Lata".
Nós somos serranos, como vocês sabem. Na Mantiqueira chove muito. Na época das águas, quando na estrada não passa nem tatú calçado com chuteiras, caminhão leiteiro, velho e atolado, com ponta de eixo quebrada lá nas lonjuras do Inferninho, Barrocão ou Tuncuns, era o Zé quem ia dar socorro. O conformado mecânico-residente comia o pão que o diabo barreava com o rabo, sabedor que na vida a gente tem que tomar chá de pau tenente pra saber que guaraná sem gelo é uma gostosura. Mas tinha um coronel Joaquim S..., fazendeiro produtor de leite, morante bem pra lá dos Agudos, cujo motor da picadeira de trato era daqueles Buck antigos, de um cilindro só, dessa grossura, e que pra pegar de manhã era um aqui del-Rey! Afrouxava três ou quatro crioulos moçambiques, daqueles parrudos, na manivela, e só pegava a poder de promessa e oração em rosário de vinte mistérios (não que eu seja exagerado); bem por isso o povim daquela banda chamava aquela merda de "Cavalo Arisco", tal o suador que causava pra pegar de manhã. Por mal dos pecados aquele trem só achava de dar aqueles papuques em dia de sábado ou domingo; como não se podia deixar de picar o trato do gado, quem era chamado pra consertar? Não preciso nem falar!
Zé da Lata já andava meio escabriado de ir consertar aquele estrupício em dia de folga, cansado de dar um cheiro de éter pra fazer o Buck pegar mais fácil, de gastar a última gota de suor em benefício do trato picado das vacas do coronel (as de leite).
Então, num domingo, pelas cinco horas da manhã e após uma noitada de sanfona com requebros e gemidos horizontais, tudo regado a pinga com beiço de porco, Zé da Lata foi tirado da Roseli pelas doces palavras do Manezinho:
- O motor do homem não quer pegar. Vai lá!
Tivesse caído um raio-corisco na sua cabeça tamanho não seria seu atordoamento. Mas contra força não existe resistência, levantou-se e foi chamar Toninho Fuinha para dar um mão. Antes de pegarem estrada, passaram na farmácia Normal do seu Raimundo onde o Zé comprou um vidro de éter de 250ml; esse produtos, todos sabem, tem um poder de explosão trocentas vezes maior que o diesel. Como o Zé já tava nos gorgomilhos com esse costume de arrumar velho em dia de domingo, foi logo avisando ao Fuinha:
- É o seguinte: vamos chegar lá e eu vou tuchar (acho que disse carcar) uma tantada da boa no trem e dar uma manivelada; se ele der de pegar, a gente corre porque só Deus sabe calcular o que pode acontecer.
Chegaram e cascaram uma dose generosa na goela do Buck e o Zé puxou a manivela... Bam...bam... bam...bam...bam...bambambambam bam, e o motor acelerou, disparou, treslocou de não mais se distinguir o bam-bam, só o urro do bicho no último da aceleração. Não deu outra! Quando os dois corriam do acidente programado o motor explodiu! Mas explodiu de explodir mesmo! Estrondo de fazer as vacas - de susto - secar o leite do dia; da criançadinha dos colonos e dos colonos e do povo da casa grande passarem por uma caganeira geral; hortelã e melissa gastaram tanta pra fazer chá que foi preciso emprestar açúcar do vizinho Dr. Aloísio. Foi um despautério!
Passado o tremor do barulhão, constatou-se que o bloco do motor tinha se partido em três pedaços; biela e pistão estavam pendurados na cumieira; as peças mais míúdas viraram pó; o fumação provocado pelo baque do estrondo formava uma névoa dentro do rancho, sem contar aquele cheiro de peido de classe turista de avião.
Compenetrado Zé diagnosticou fratura exposta do motor; nunca mais voltou como mecânico naquelas lonjuras (em algum forró ainda comparece) e o coronel (reformado da infantaria do exército -não que eu seja reparador-) comprou um motor novo lá no Ismael Máquinas Agrícolas.
A minha camionete? Após tais lembranças Zé a consertou na horinha, não cobrou pelo serviço e eu lhe ofereci um garrafão da pinga que o Xando destila