Canto Fronteiro
O quarto é pequeno - 12 m² - ligeiramente bagunçado. Umas pilhas de livros sobre a cadeira, a maioria lida pela metade, uma velha TV no canto, a esquerda da janela de quem olha da porta, que está de frente. Na lateral direita um armário e uma cama encostados, parecem fazer parte de um conjunto se considerar a idade, mas os contornos e tonalidades são disformes. Abaixo da cama, além de sapatos e meias esquecidas, um violão silencioso. Na lateral esquerda estão uma mesa com computador e uma outra com uma máquina de escrever e alguns recortes de jornais e revistas. Os objetos da mesa com o computador em motim: copos, restos de comida e alguns trastes, coisa material. Um cheiro mórbido paira, ocupa densamente cada extensão da atmosfera ali presa. Esse é o quarto de segunda-feira. Na quarta-feira, cinco dias antes, tem faxina, toda quarta-feira. Há sete anos alguém cuida do espaço e do homem, melhor, das coisas do homem: roupas, compras, pagamentos e etc. Uma empregada ou talvez uma parenta, é uma mulher.
O homem é professor universitário, não importa a disciplina. Fala pouco, não incomoda a ninguém senão as velhas fofoqueiras do condomínio, que conjeturam sobre o seu passado, presente e futuro. Durante a semana, à noite, apenas dorme e come nesse apartamento, nos fins de semana escreve, estuda e lastima. Assiste a qualquer coisa na TV, ouve um blues... Não assina uma TV a cabo porque acha desperdício. Está a seis anos escrevendo um romance que nunca fica pronto, tem medo de que os leitores confundam a sua história com a dos personagens, mas reconhece que a referência é inevitável. Tem medo de não haver leitores. Tem muitos medos. As amizades são poucas, porém sublimes. E há uma amizade, a capital desse relato, que é escondida, tratarei dela adiante. Está sempre produzindo o cheiro que toda quarta se acaba e já na quarta recomeça. No domingo o cheiro está na intensidade perfeita, na segunda e terça sente vontade de ficar livre dele e na quarta se safa, compraz e começa de novo. O cheiro é composto, principalmente, pelos gases matinais que libera, o cesto de roupas sujas e o banheiro, que só é lavado um vez por semana. Faz parte do homem.
A janela abaixo é de um quarto grande – 12 m² - absolutamente organizado. Tem uma TV nova no canto, a direita da janela de quem olha da porta, que está de frente. Na lateral esquerda um armário e uma cama, brancos, milimétrica e minuciosamente planejados. Sobre o criado mudo um romance espírita, sobre a escrivaninha um secador de cabelo, escovas, prendedores, perfumes, cremes e etc. A cama é macia e os lençóis lisos, claros e perfumados. O cheiro é celestial: flores e incenso. Embora estejam esse e o de cima na mesma posição em relação ao sol, está o quarto de baixo mais iluminado durante todo o dia. Aqui, ao contrário do homem que divide o espaço com ácaros e insetos, mora apenas a mulher.
Ela é recém-divorciada, não importa a profissão, mas trabalha. Assiste bastante à televisão, gosta do conteúdo da TV aberta, passa grande parte do tempo em frente a ela. Durante a semana recebe visitas em casa: a mãe, quase diariamente, os filhos e as amigas, ou fica só. Tem se esforçado para ficar só em alguns dias da semana. O esforço para receber menos visitas, principalmente à noite, deve-se a recente relação com homem que há pouco omiti e chamei de amizade escondida. Se é que você, leitor, se lembra.
Ele, ultimamente, sempre que autorizado, desce pelas escadas de emergência, que são externas ao prédio, entra pela janela naquele mundo novo. Têm muito, quase sempre, ou nada, às vezes, para dizer, mas não conseguem entender como viveram um sem o outro até então. E os mundos têm se misturado, ele sobe com o cheiro das flores e o seu suor fica. Ela se lava, ele não.